Teatro,

25 anos de solidão

O desgaste de um casamento é o tema do único texto para teatro de Gabriel García Márquez, publicado agora pela primeira vez Brasil

28jun2022 | Edição #59

A cena única do monólogo Diatribe de amor contra um homem sentado, do Nobel de Literatura Gabriel García Márquez, transcorre numa madrugada de agosto de 1978, em uma cidade do Caribe em que os termômetros batem nos 35 graus à sombra e a umidade relativa do ar atinge a inimaginável marca de 95%. Não se trata de informação que possa ser menosprezada: é nesse ambiente tórrido e pegajoso, onde as lembranças parecem escorrer até das paredes e da mobília, que a personagem Graciela Jaraiz de la Vera passa a limpo os 25 anos de um casamento que lhe rendeu um filho, incontáveis noites em claro à espera do marido infiel e a perplexidade diante do percurso da felicidade e do desejo, que insistiam em escapar por uma porta à medida que a ascensão social e econômica da família entrava por outra. Escrito em agosto de 1987, o único texto teatral do autor colombiano estrearia em Buenos Aires no ano seguinte e, até o momento, permanecia inédito nos palcos e nas estantes do Brasil.


Diatribe de amor contra um homem sentado, do Nobel de Literatura Gabriel García Márquez

O leitor acostumado à reconhecida maestria que García Márquez possuía de ludibriar a realidade para extrair um estilo que, sob o nome genérico de realismo mágico, mudaria para sempre o status da literatura latino-americana diante dos olhos do mundo e de si mesma talvez se ressinta nesta obra de personagens e episódios grandiloquentes e fantasiosos.

O escritor, nesse seu voo solitário pela dramaturgia, economizou na magia — ainda que sem extingui-la de todo. Estão lá, por exemplo, a se imiscuir nas lembranças da protagonista, as notas estridentes que a vizinha Amalia Florida, morta e enterrada há anos, ainda procura extrair de um saxofone que não foi capaz de dominar em vida e agora ainda menos no além-túmulo. Diatribe pode ser vista, sem arranhar o currículo lúdico de García Márquez, como um drama realista, em que todos os sortilégios e toda a alquimia foram empregados unicamente por Graciela para manter viva a chama que o comportamento errático do marido se esforçou para ofuscar ao longo dos 25 anos da união. 

Diatribe narra a história de Graciela e de seu marido, um herdeiro falido de uma grande fortuna que, no palco, será representado por um manequim de terno escuro sentado em uma poltrona com o rosto escondido atrás de um jornal. Eles acabam de voltar de um jantar e têm poucas horas de descanso antes de comandar um evento de proporções históricas no dia seguinte: a comemoração das bodas de prata do casal, cujos preparativos vêm, há alguns dias, inundando a pequena cidade caribenha de caviar, champanhe, bois importados do Japão e milionários vindos dos quatro cantos do mundo. Aparentemente sem combinação prévia, os dois trocam o repouso por outros afazeres: ele, a leitura de um jornal com notícias amanhecidas; ela, a prospecção arqueológica que vai revelar um inventário de lembranças, traições, mentiras e desejos solapados ora pela moral, ora pelo amor.

A afluência de frases de potência coloca a peça em um ponto luminoso entre Nelson Rodrigues e Oscar Wilde

García Márquez presenteia Graciela com uma primeira fala cujo impacto nada deve ao genial parágrafo inicial de Cem anos de solidão, que figura até hoje como um dos melhores inícios de livro de todos os tempos (“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”). Após riscar um fósforo, cuja chama incipiente serve tanto para acender um cigarro como para revelar ao público os primeiros contornos de uma face pálida, Graciela proclama que “nada se parece tanto com o inferno quanto um casamento feliz”. A afluência de frases de igual potência ao longo da peça transporta-a para um ponto luminoso entre os universos de Nelson Rodrigues e Oscar Wilde, nos quais o refinamento e a ironia lapidada garantem, antes de qualquer coisa, a sobrevivência dos personagens em meio à aridez dos seus pares.

Indiferença

Ao destinar à sua protagonista uma solidão que só não é completa em função da presença de um companheiro alheio a tudo — o que só potencializa o retrato do abandono —, García Márquez recorre a um modelo já empregado pelo francês Jean Cocteau na peça
O belo indiferente, de 1940, em que uma cantora de cabaré rasga o verbo diante de um amante surdo às suas súplicas e cego às suas lágrimas. Nas incontáveis montagens que o clássico francês recebeu ao redor do mundo, houve diretores que optaram por manter o personagem masculino assombrando a cena desde o início do espetáculo. Em outras, o amante irrompe no palco com a peça já em andamento. Mas não há opção cênica que suavize a condição de uma protagonista condenada à indiferença. Em A voz humana, de 1930, o mesmo Cocteau já havia deixado uma mulher sozinha no palco, falando ao telefone com o homem que acaba de trocá-la por outra companheira.

Afora o discurso emotivo e ignorado pelo parceiro, esteja ele em cena ou do outro lado da linha, há poucas semelhanças entre a protagonista de García Márquez e as de Cocteau. Enquanto nas duas obras do francês o principal combustível do conflito são questões de cunho pessoal, como o abandono e um incontornável desequilíbrio nas relações do casal, a Graciela de García Márquez permite que em seu monólogo haja espaço para um retrato político e econômico de um Caribe imaginário mas nem tanto, no qual o dinheiro corrompe os costumes, os títulos nobiliárquicos emprestam um verniz fajuto a famílias plebeias e o poder das aparências joga no vazio os verdadeiros afetos. Do jorro de Graciela escorrem surpresas e conformismo, e ainda angústia e desejo embaralhados em uma lucidez raivosa que, se não espantam o torpor do marido ao lado, na certa encontram ressonância no inconsciente feminino.

Da monumental galeria de personagens criados por García Márquez, Graciela foi a única a ter o palco como berçário e uma das poucas a contar com meros sessenta minutos para mostrar ao mundo a que veio. Da longa jornada noite adentro a que o autor a submete, Graciela emerge como heroína. Solitária, é verdade. Mas capaz de tomar as rédeas e mudar o destino dos seus 25 anos de solidão.

Quem escreveu esse texto

Sérgio Roveri

Escreveu Um beijo em Franz Kafka (Giostri).

Matéria publicada na edição impressa #59 em junho de 2022.