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Richard McGuire emprega um mesmo enquadramento para transitar de modo não linear pela história do planeta ao longo de bilhões de anos
15nov2018 | Edição #8 dez.17-fev.18Uma das primeiras páginas de Aqui mostra o desenho de uma paisagem pantanosa. A data, no alto do canto esquerdo, não deixa dúvidas: a cena acontece em 8000 a.C. Sobre a natureza que domina essa página dupla, um quadrinho faz as vezes de janela e conduz o leitor ao ano de 1989. Dentro dele, vemos uma tradicional cena de família, com pessoas contando piadas no sofá de uma sala de estar.
Logo de saída fica claro o artifício de Richard McGuire: o enquadramento de todas as páginas duplas é sempre o mesmo, e cabe a cada quadrinho apresentar um fragmento dele em um ano diferente. Na página anterior, por exemplo, a situação de 1989 se encaixa sobre a mesma sala, em 1955. Mudam as estampas da parede, a cor dos elementos decorativos, mas há continuidade das linhas da janela e da cortina de um quadro a outro. Recorrendo a essa proposta estrutural inovadora, o autor transita de modo não linear e fragmentário pela história do planeta, restrito a um definido recorte espacial.
Continuemos em 1989: naquele ano, o até então desconhecido McGuire marcou época nas páginas da publicação RAW com uma história de seis páginas chamada “Here” — a segunda de sua carreira. Inspirado no curso que fez com Art Spiegelman, o artista desenvolveu uma HQ que agradou ao autor da premiada graphic novel Maus. Spiegelman inseriu a curta experiência narrativa na nona edição da sofisticada revista que criou e editava com a sua mulher, Françoise Mouly. A RAW procurava renovar a cena dos quadrinhos com trabalhos experimentais, para mostrar que era possível ir além do sexo, drogas e escatologia dos comics underground. Chamou a atenção essa história em preto e branco e traço retrô. Até um olhar desatento percebe que há algo diferente no trabalho: quadrinhos dentro de quadrinhos, de diferentes tamanhos e formatos, começam a se sobrepor.
McGuire teve a ideia ao se mudar para um apartamento, em 1988, e ficar pensando em quem havia morado lá antes dele. Quando tinha feito os primeiros esboços, ouviu um amigo descrever a interface do sistema operacional Windows, o que despertou no artista a convicção de que poderia explorar a estrutura de janelas para enquadrar simultaneamente recortes diversos de tempo. Essa ruptura da leitura tradicional dos quadrinhos fez daquelas páginas um marco. Consciente da inovação, McGuire começou a pensar em expandi-la.
A ideia ganhou força com a morte dos pais e o processo de esvaziar a casa. O resultado foi a transformação da HQ curta num livro com mais de trezentas páginas, lançado em 2014.
Segundo o autor, a sala da história é o desenho de um dos cômodos de sua casa. Na nova versão, o enquadramento desse espaço leva em consideração as peculiaridades do livro como suporte, posicionando a quina bem na altura da linha central do miolo. Sucedem-se, no cômodo dessa casa antiga, levantada em 1907, diversas gerações, mudanças de costumes e tecnologias, modos de ocupar os espaços. A história abarca milhares de anos, mas a sala da residência concentra muitos dos acontecimentos e funciona como fio condutor. Apesar da leitura fragmentária, o autor busca fazer conexões entre as situações, evitando que o leitor se perca.
Liberdade
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O volume de páginas permitiu ensaios gráficos e a inserção de novas histórias. A liberdade no uso dos quadros gerou explorações gráficas inusitadas, como nos recortes longitudinais, que mostram apenas a copa de uma árvore antiga, ou nada além dos pés de moradores. Algumas janelas destacam detalhes: uma mão, uma parte de rosto, um objeto, balões de fala. Algumas páginas duplas viajam por frações temporais de milésimos de segundo, conferindo movimentos semelhantes aos da animação. Certas passagens abusam do contraste, outras buscam um tema comum — como mães com bebês de várias gerações ou uma festa multitemporal.
Uma peculiaridade do livro é a variedade de tratamentos no desenho. McGuire é um artista de muitas facetas, fundador da banda pós-punk Liquid Liquid e criador de brinquedos. Alguns de seus livros infantis e mesmo algumas capas para a The New Yorker, por exemplo, recorrem a um estilo mais geométrico. Já em Aqui, vemos paisagens pintadas, cenários mais sóbrios em vetor, rabiscos a lápis, contornos naturalistas que parecem ter partido de fotos digitais.
Qualquer admirador da versão de 1989 deve ter encarado com certo temor o desenvolvimento de Aqui em graphic novel. No entanto, McGuire soube desenvolver as ideias iniciais. Há grandiosidade no novo Aqui, e a influência de 2001: uma odisseia no espaço, de Stanley Kubrick, possivelmente contribuiu para isso. A investida em cenários amplos e sublimes, as transformações da natureza, as diferentes escalas das coisas, os grandes acontecimentos e a fruição do dia a dia, o nascimento e a morte, a sensação de simultaneidade, tudo converge para o drama existencial.
Diante de tantas mudanças, cada instante — mesmo aquele congelado num pequeno quadrinho da história — parece ter mais valor. Tudo muda, menos o enquadramento que se coloca, com a ajuda de molduras metalinguísticas, diante do leitor para contar uma inesgotável história do tempo.
Matéria publicada na edição impressa #8 dez.17-fev.18 em junho de 2018.
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