Literatura infantojuvenil,

Tipos em movimento

Soluções gráficas criativas e envolventes geram livro-brincante para o leitor criar novas conexões entre criaturas, letras e expressões

09out2024
Ilustração de Madalena Matoso (Divulgação)

Inevitável não lembrar da frase “ninguém solta a mão de ninguém” na primeira folheada de Dobra letras: já na capa do livro vemos duas instigantes figuras estilizadas andando juntas, conectadas. A expressão — disseminada não faz muito tempo para reforçar união e amparo nos tempos carregados de tensão do conturbado contexto brasileiro — evoca um cenário que contrasta com o tom leve e bem-humorado dessa obra criada em outro ambiente, o de Portugal.

No livro, lançado no Brasil pela Peirópolis, a autora e ilustradora Madalena Matoso apresenta ao leitor uma publicação universal, sem particularidades conjunturais. Os inúmeros seres que desfilam por suas páginas não verbalizam suas características, sendo ainda assim envolventes e bastante diversos entre si, nas formas e nos grafismos.

Publicado originalmente em 2016 pela premiada editora portuguesa Planeta Tangerina, o belo livrinho brincante exibe a conexão entre criaturas — e também entre as letras do alfabeto. De página dupla em página dupla, quatro inusitados personagens, cada qual composto graficamente por formas geométricas e uma letra, andam de mãos dadas, enfileirados e interligados de modo a enfatizar a palavra que resulta do agrupamento destes elementos tipográficos.

O impacto visual das cenas é imediato: a ilustradora, nascida em Lisboa e formada em design gráfico, articula com inventividade formas geométricas e elementos depurados gerando uma diversidade de criaturas. 

A comunicação é clara, com a essência das figuras na cor avermelhada e as letras em preto. Seu vocabulário gráfico é coeso, coerente com o conjunto de sua obra e bem integrado à produção da Planeta Tangerina, fundado em 1999 por Madalena e mais três amigos. Inicialmente um ateliê de design gráfico e ilustração, o grupo começou a editar álbuns ilustrados a partir de 2006, adquirindo forte identidade e destaque no meio dos livros infantis por conciliar temas sensíveis a uma linguagem sintética, comunicativa, com paletas de cores fortes.

Se fazem presentes em Dobra letras as qualidades modernas já vistas em outros trabalhos de Madalena (muitos deles publicados no Brasil): concisão eficaz, espaços sem profundidade, algumas limitações fortuitas e consciência do livro como objeto. Chama a atenção o modo como a autora aproveita a ausência de amarras em relação às criaturas — que podem ser insetos, alienígenas, mamíferos, palhaços, soldadinhos, seres misteriosos e indefinidos —, para explorar  uma diversidade substancial de soluções formais como manchas, pontinhos, retângulos em sequência, linhas incompletas ou elementos repetidos como se fossem de carimbo, entre outras.

Grande abraço

Unidos do começo ao fim, da capa à quarta capa, por braços esticados, os personagens parecem “abraçar” o próprio livro, transitando da esquerda para a direita numa fila contínua por todas suas superfícies. Cada indivíduo situado no canto da página deixa o braço tocar o limite da folha, sugerindo um aperto de mão para o colega da página seguinte. Ao adotar uma proposta simples e eficaz, despida de especificidades complicadoras, Madalena gera um objeto gráfico consistente e convidativo, muito bem editado.

Ao dobrar uma página ao meio, para frente e para trás, são definidas novas palavras

Essa caminhada lúdica é entrecortada por vincos no meio das páginas, que convidam o leitor a manusear e interagir com o objeto: ao dobrar uma página ao meio, para frente e para trás, são definidas novas palavras. Ou seja, nessa fileira de seres congregados há espaço para novas conformações, para colegas tipográficos que trocam de lugar, por meio do gesto do leitor ativo e participante. No ato de unir os passantes, há o sincrônico estreitamento de vínculo do leitor com o próprio livro. Além do movimento dos personagens no sentido horizontal, surge o transversal, com as folhas dobradas, que incorporam subitamente um amigo distante.

Como em jogos e brinquedos, abre-se espaço para envolvimento e desdobramentos, como a invenção de palavras novas — e mesmo histórias novas. Nem todas as palavras possíveis são familiares, como “roto” e “mota”, o que estimula a imaginação e os questionamentos. Nesse trânsito entre palavras de mesmo tamanho, muitas delas parecidas, como “mola” e “mota”, ou “tala” e “taco”, é ativada uma criação poética com amplas possibilidades.

Quem escreveu esse texto

Daniel Bueno

É professor da Ebac Online e da École Intuit Lab. Artista gráfico e quadrinista, ilustrou A janela de esquina de meu primo, de Hoffmann (CosacNaify).

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