Psicologia,

A psiquiatria de Fanon

Coleção de textos mostra como o médico nascido na Martinica articula de forma pioneira antirracismo à prática clínica

01jul2020 | Edição #35 jul.2020

“O negro não é um homem”, afirmou o martinicano Frantz Fanon aos 26 anos, no famoso manuscrito intitulado “Ensaio sobre a desalienação do negro”. O texto foi escrito em 1951 como “tese de exercício”, uma espécie de trabalho de conclusão necessária para atuar como psiquiatra no sistema de saúde francês. É sabido que esse manuscrito, que mais tarde seria publicado sob o sugestivo título de Pele negra, máscaras brancas, foi rejeitado por seu estilo demasiadamente ensaístico e recorte temático amplo. No seu lugar foi apresentado outro mais adequado ao curso, em que discutiu a influência das interações sociais nas manifestações histéricas e comportamentos neuróticos de grupos clínicos acometidos por lesões anatômicas específicas. 

Fanon foi muito bem avaliado por sua banca examinadora e, depois de formado, seguiu a vida atuando como psiquiatra e pesquisador da saúde, mesmo nos momentos de intensa participação política na Frente de Libertação Nacional da Argélia e, depois, no Governo Provisório da República da Argélia. O que não se podia equacionar eram as contribuições dessa atuação para o campo da saúde mental, assim como a sua importância para o desenvolvimento de suas teorias e práticas políticas. Embora já houvesse pistas a esse respeito, o mistério só foi solucionado em 2015, com a publicação francesa de Frantz Fanon: écrits sur l’aliénation et la liberté, no qual foram reunidos artigos inéditos apresentados por Jean Khalfa, professor na Universidade de Cambridge. No calhamaço original de 818 páginas, destacam-se os chamados “Escritos psiquiátricos”, a que o público brasileiro passa a ter acesso com a primorosa publicação de Alienação e liberdade: escritos psiquiátricos, da editora Ubu, traduzido por Sebastião Nascimento.

Os “Escritos psiquiátricos” oferecem uma contribuição a um entendimento mais preciso do pensamento de Fanon e à possibilidade de relacionar dois grandes campos que nem sempre se reconhecem, mas que para Fanon estavam intimamente ligados: o antirracismo e a clínica pública. Na sociedade colonial capitalista moderna, a negritude foi equiparada à sensibilidade irracional e à loucura, reduzida às suas dimensões biológicas. Ao afirmar, em Pele negra, máscaras brancas, que “o negro não é um homem”, Fanon objetivava denunciar a animalização atribuída aos africanos e a seus descendentes espalhados pelo mundo moderno. Por outro lado, ao se debruçar sobre os dispositivos de cuidados aos portadores de transtornos mentais graves em contextos coloniais, o jovem psiquiatra se posicionou diante dos grandes debates que envolviam a sua profissão na França naquele período. Essas discussões giravam em torno da questão da identidade e das fronteiras disciplinares entre neurologia, psicologia e psicanálise, assim como da possibilidade de desenvolver práticas clínicas de cuidados que considerassem a relação entre corpo físico neurológico, psique e sociedade no desenvolvimento de distúrbios e sofrimentos mentais. 

Em Pele negra, máscaras brancas, Fanon se aproxima da psicanálise freudiana porém enfatiza, em diálogo com ela, que “a alienação do negro não é apenas uma questão individual”, mas também produto das relações sociais, em suas contradições de raça, classe e gênero. Desse modo, defende um diagnóstico que leve em consideração os fatores sociais da subjetividade e do sofrimento. 

Luta antimanicomial

A grande novidade de Alienação e liberdade em relação aos outros escritos do autor é que a centralidade desse sócio-diagnóstico que empreende não anula as dimensões neurológicas e psíquicas, mas aponta para a sua reciprocidade. O debate sobre a existência ou não de uma lesão anatômica relativa a determinados sintomas psíquicos, a polêmica sobre os usos e limites das medicações e outros tratamentos, como o eletrochoque, e o papel da cultura e das condições sociais na expressão corporal de sintomas psíquicos e na plasticidade cerebral encontram respostas originais sob o olhar científico radicalmente anticolonial e humanista de Fanon. 

Ele já havia alertado em diversos textos que no colonialismo o colonizado é lançado para baixo da linha da humanidade, ficando aquém do “pacto social” moderno que instaura a “dominação legítima”; por essa razão, a violência, a exemplo do assassinato de crianças negras brasileiras por policiais, não causa qualquer comoção. Negados em sua dimensão humana, os povos não europeus figuram apenas como pano de fundo da história ocidental ao lado de palmeiras, camelos e leões. No mesmo caminho de Fanon, o famoso psiquiatra antimanicomial Franco Basaglia, principal formulador e implementador da psiquiatria democrática na Itália entre as décadas de 1960 e 70, se apoiou no psiquiatra martinicano para denunciar a dimensão colonial das instituições manicomiais, em que o “louco”, visto como “alienado” e “destituído de razão”, não é considerado sujeito de si e, portanto, é reduzido a objeto de intervenção médica. O que ambos estavam denunciando é que a relação entre médicos e pacientes, na modernidade, assumiria uma expressão colonial em suas manifestações de violência e exclusão.

Para Fanon, a relação entre médicos e pacientes, na modernidade, assume uma expressão colonial

As experiências clínicas implementadas por Fanon, bem como as suas reflexões anticoloniais, foram referências fundamentais para Basaglia. Aliás, a reforma do sistema antimanicomial italiano influenciou decisivamente a importantíssima — e hoje ameaçada — reforma antimanicomial brasileira. É curioso que, em um país de origem colonial como o Brasil, as reflexões e práticas implícitas à reforma e à saúde mental como um todo não tenham se debruçado sobre a produção intelectual antirracista. As contribuições de intelectuais como Juliano Moreira, Virgínia Bicudo e Neusa Santos Souza para o campo seguem invisíveis em um país cuja sociabilidade não apenas se estruturou a partir da escravidão e do racismo, como viu a nascente democracia, no início do século 20, conviver harmonicamente com o “cemitério de vivos” (conforme descrição de Lima Barreto) que caracterizou o sistema manicomial, sob a influência central da eugenia. O silêncio em relação ao racismo diz mais sobre a posição de classe e os privilégios raciais que ainda permeiam o campo do que sobre aqueles que historicamente foram objeto de sua intervenção.

Para além disso, Alienação e liberdade oferece fartas fontes documentais que permitem a investigação de elementos ainda pouco explorados pelos especialistas no seu pensamento, como seu posicionamento sobre os aspectos filosóficos e sociais da loucura, bem como as possibilidades clínicas e políticas de intervenção institucional e do cuidado. Sua notável erudição e desenvoltura ao mobilizar criticamente a contribuição da sociologia, da psiquiatria, da neurologia, da psicologia e da psicanálise sob a companhia de autores como Sigmund Freud, François Tosquelles, Henri Ey, Jacques Lacan e outros clássicos da saúde mental permitiram-lhe chegar a conclusões originais que demandariam uma agenda ampla de pesquisa. 

Convém avisar que Fanon caminha ao lado do jovem Lacan e do velho Tosquelles em sua luta contra o biologicismo e a violência hierarquizante que atravessavam a psiquiatria. Contudo, é com a noção da loucura como “patologia da liberdade” de Ey e a ruptura com a psicoterapia institucional de Tosquelles que Fanon se filiará às perspectivas inglesas de ampliação do cuidado para além da instituição: inicialmente, através da integração social-comunitária do paciente a partir do hospital-dia e, depois, a partir da sua rebelião contra as estruturas sociais desiguais que promovem o sofrimento e a perda de si dos indivíduos. 

Clínica e política

A vinculação entre clínica e política sob a qual sua abordagem foi estruturada fez com que tomasse, por um lado, o sofrimento psicossocial como metáfora e compreensão dos efeitos do colonialismo sobre a subjetividade e, por outro, equacionar a relação entre biologia, sociedade e psique dos transtornos mentais. É verdade que algumas técnicas de tratamento por ele utilizadas foram posteriormente revistas ou reorientadas. O fato é que, mesmo quando lançou mão delas, a sua busca era sempre por apontar as influências psíquicas e sociais sobre o adoecimento e o tratamento mental. Nesse aspecto, os estudos etnográficos que estabeleceu junto à cultura argelina e a sua relação diante da loucura fazem dele um dos pioneiros da etnopsiquiatria moderna.

Alienação e liberdade possui apresentação do filósofo Renato Nogueira e introdução de Jean Khalfa, organizador dos “Escritos psiquiátricos”. Dividida em quatro partes, a obra inicia com  “Reflexões sobre a clínica psiquiátrica”, em que apresenta um conjunto de observações clínicas colhidas por ele ao longo de tratamentos no contexto da psicoterapia institucional. A segunda parte, “Reflexões sociais do sofrimento psíquico”, destaca seus estudos sociológicos e etnográficos sobre como a cultura norte-africana lidava com a loucura. O objetivo desses estudos era fundir saberes e dispositivos psíquicos de cuidado tradicionais árabe-africanos e ocidentais. A terceira parte é a transcrição de um curso sobre psicopatologia social que ele ofereceu no Instituto de Altos Estudos de Túnis, e o último capítulo é a transcrição da tese de exercício de Fanon, uma espécie de trabalho de conclusão de curso em psiquiatria. Nesta última, revisa a literatura ocidental sobre transtornos psíquicos advindos de lesões neurodegenerativas para, a partir da observação e análise de um caso empírico específico, apontar a relação entre o que denomina “doenças viscerais”, “causas psíquicas” e “relações intersociais”. 

Resta concordar com Jean Khalfa quando afirma que a atuação clínica de Fanon nunca se reduziu às suas dimensões profissionais, mas assumiu importância estrutural para todo o seu estatuto teórico: “Não há dúvida de que Fanon amava sua vida de revolucionário, de jornalista e de embaixador. Mas, uma vez conquistada a independência, ele tinha a intenção de dedicar o resto de seus dias à organização, em sua área, de estruturas capazes de resolver da melhor maneira possível as patologias da liberdade. Sua prática científica e clínica é inseparável de todas essas suas vidas, vividas sem reserva”. Poderíamos supor que se o jovem psiquiatra não tivesse morrido tão cedo, em função de uma leucemia, aos 36 anos, e, sobretudo, por causa de um racismo epistêmico que ignora a produção intelectual de autores negros, certamente teria se convertido em leitura obrigatória em todas as áreas de conhecimento aqui mencionadas, assim como ocorreu com outros clássicos com que ele dialogou. 

De todo modo, a importância de Alienação e liberdade extrapola o mero reconhecimento de um notável intelectual negro — o que por si só já seria louvável — e se constitui como uma grande oportunidade de refletir sobre a intersecção de feridas ainda abertas como o racismo, o sofrimento dele decorrente e a manicomialização, elevando a nossa compreensão a respeito daquilo que seria a sua clínica revolucionária. Mais do que isso, oferece preciosos subsídios à coprodução, na relação com o “paciente”, de tratamentos humanizados que não desconsidere a sua experiência individual ou cultural. Em um momento em que o campo da saúde mental tem sido cada vez mais convocado a reconhecer e confrontar as maneiras como o racismo se reproduz em seu funcionamento normal, Alienação e liberdade oferece contribuições sem precedentes.

Quem escreveu esse texto

Deivison Faustino

Autor de Frantz Fanon: um revolucionário, particularmente negro (Ciclo Contínuo). Neste ano, vai lançar A disputa em torno de Frantz Fanon: a teoria e a política dos fanonismos contemporâneos pela Intermeio

Matéria publicada na edição impressa #35 jul.2020 em maio de 2020.