História,

A doença que viralizou

Livro narra os deslocamentos geográficos, políticos e sociais do vírus mais estigmatizado da história

01ago2019

Lampião — oficialmente O Lampião da Esquina — foi um jornal gay que circulou no final dos anos 1970 no Brasil. O governo militar se incomodou e procedeu a uma devassa contábil que não detectou nenhuma irregularidade nem verbas de origem suspeita. Após esse fracasso (para eles), houve nova ofensiva: o jornal foi acusado de proselitismo. Os membros do conselho editorial — de que eu fazia parte — foram interrogados pela Polícia Federal. Tivemos direito à presença de um advogado, mas, durante a ditadura, entrar nas dependências da Polícia Federal para interrogatório era ameaçador e não se sabia aonde isso poderia levar. Saí aliviado. A Justiça não identificou atos de proselitismo e ganhamos. Foi uma grande vitória contra o governo militar.

Essa situação, vivida com temor e coragem, é agora vista pelo filósofo Eduardo Jardim no livro A doença e o tempo: aids, uma história de todos nós. “Diferentemente do que ocorreu nos Estados Unidos, não houve no Brasil um movimento gay expressivo, mas apenas iniciativas isoladas”, escreve ele. É correto. Contudo, a distância entre a intensidade da ação e da vivência e o olhar panorâmico da história — isto é, passar de agente da história a leitor da historiografia — é brutal. Ainda mais se levarmos em conta que a ação brasileira é comparada à ação norte-americana. Se Jardim não tivesse elaborado essa comparação e tivesse abordado diretamente a ação brasileira, teria tido outra percepção? 

No início da epidemia, o doutor Ricardo Veronesi convidou cerca de quinze pessoas para uma palestra no Hospital das Clínicas, em São Paulo. Foi um show de preconceitos, agressividade e ameaças. Saímos estonteados, encostando-nos numa árvore e num poste, apoiando-nos uns nos outros, girando em torno de nós mesmos. O grupo não estava em condição de tomar decisão alguma sobre o que acabava de desabar nas nossas vidas. Procurei imediatamente uma amiga da área da saúde, politicamente bem relacionada. O então secretário estadual de Saúde, João Yunes, estava em Nova York (salvo desmemória). Quando voltou, Darcy Penteado, João Silvério Trevisan, eu e Edward McRae nos encontramos com ele. Yunes entrou na sala com um assessor e duas secretárias. Perguntou sobre o motivo da reunião, respondi que era por causa do noticiário sobre a epidemia. Eles haviam lido. E aí teve início uma cena  burlesca. 

Yunes disse que “eles” sabiam quais eram as práticas sexuais entre homem e mulher, mas não sabiam o que dois homens faziam entre si. Coube a Trevisan fazer uma descrição técnica do relacionamento sexual entre homens, sem poupar detalhes. Darcy relatou práticas usuais nas saunas nova-iorquinas. As secretárias bem maquiadas e de salto alto anotavam conscienciosamente. 

Essa reunião é comentada por Eduardo Jardim da seguinte forma: “O gesto é significativo, pois ajuda a explicar o processo que terminou por delegar ao Estado o papel de protagonista principal na luta contra a aids no país”. A partir daí, desenvolveu-se uma política pública de prevenção e tratamento da aids que teve no doutor Paulo Teixeira um de seus principais agentes e que obteve reconhecimento internacional. 

‘O papel quase exclusivo do Estado no combate à aids no Brasil está de acordo com a fisionomia política do país’

Para resumir, a ação dos gays no início da epidemia consistiu em pressionar o Estado, que assumiu a liderança. O autor enquadra essa ação específica num contexto maior: “O papel quase exclusivo do Estado no combate à aids no Brasil não reflete apenas as circunstâncias de um momento, mas está de acordo com a fisionomia política do país”. Não há como discordar. Quem trabalha na área da cultura sente atualmente na pele essa supremacia estatal. Quando o ultraliberalismo desmonta o Estado e as políticas públicas, temos que nos agarrar a destroços. 

Avanço dos EUA

O panorama nos Estados Unidos era diferente: foram “criados meios de forçar o governo e os laboratórios farmacêuticos a acelerar a produção e a comercialização de medicamentos”. De fato, nós só pressionamos as autoridades, e não os laboratórios. Mas que laboratórios pressionaríamos já que os mecanismos de decisão referente à orientação das pesquisas, à produção de medicamentos e à política de preços se encontram nos EUA e em alguns países europeus? Mais tarde, médicos pressionariam revendedoras de remédios importados para conseguir preços mais em conta.

Não houve nenhum Stonewall — bar homossexual de Greenwich Village, em Nova York, invadido por policiais em 1969, causando um motim considerado o grande marco do movimento de libertação gay nos eua — para consolidar o movimento no Brasil. Essa agressão e o revide dos agredidos marcaram não só a história da comunidade gay e da própria cidade. O ano de 2019 marca o cinquentenário desse confronto histórico. No último dia 6 de junho, o atual chefe de polícia de Nova York pediu perdão por uma violência que nunca deveria ter acontecido.

A tibieza da ação gay no Brasil apontada por Jardim  é preocupante. Assim como ele percebeu na pressão sobre o Estado um comportamento geral da nossa sociedade, é lícito perguntar se essa fraqueza não se encontraria também em outros movimentos de minorias — de mulheres ou de negros, por exemplo. É importante não focar exclusivamente o tema gay/aids, mas enquadrar essas ações no contexto da sociedade brasileira de que faz parte. 

Quando tive sintomas suspeitos, procurei uma médica do convênio. Ela pediu um exame de sangue que não detectou nenhuma anormalidade. E assim foi sucessivamente, até que, semanas depois, ela pediu o teste para o HIV, que deu positivo. Perguntei à médica por que não tinha logo pedido o exame, e ela respondeu que eu não a avisara que fazia parte do grupo de risco. De fato, não falei porque nunca me vi como fazendo parte de um grupo de risco, embora conhecesse a expressão.

Eduardo Jardim empreende uma desconstrução estimulante da expressão “grupo de risco”. A noção, que já existia com significado estatístico, foi objeto de uma ressignificação “que resultou em associar o estigma a determinadas parcelas da população”.  A carga de preconceitos era tão pesada que Jardim escreve que “no início da década de 1990 já não era mais possível recorrer à noção de grupo de risco para se referir à aids”. As consultas médicas a que me referi acima ocorreram no final de 1992. 

“Grupo de risco” é uma expressão que podia parecer óbvia e natural. A análise dos subterrâneos da palavra, trazendo à tona o real significado que seu uso comum tem por finalidade esconder, nos alerta para a necessidade de desconfiar das expressões, palavras e conceitos que a sociedade nos oferece de bandeja. Isso é válido para o Big Bang. Ninguém nega a explosão. Quanto ao show Ideológico e religioso que a cercou, são outros quinhentos.

Macacos, negros e brancos

Eduardo Jardim relembra a narrativa da disseminação. Um chimpanzé na África estava com o vírus hiv. De alguma forma, o vírus foi transmitido para o homem. Levas de operários que foram para a África trabalhar na indústria da borracha voltaram contaminados (por homens?) e espalharam-no. Levas de trabalhadores haitianos foram contaminados (por homens?), voltaram ao Caribe. Gays norte-americanos em busca de sexo nas praias caribenhas foram contaminados. Migrantes haitianos levaram o vírus para os EUA.

Não tenho nenhum recurso histórico ou científico para contestar essa narrativa, que se reproduz há anos. Mas fico desconfiado: ela parece eivada de racismo. Resumo da ópera: a partir de um macaco, negros levaram o malefício aos brancos. Em geral, a narrativa da disseminação se interrompe com a chegada do vírus aos eua. A ideia de que os brancos norte-americanos pudessem contribuir para a disseminação parece excluída. Mais do que isso, ela é rechaçada. Jardim cita a canção “Americanos” (1991), de Caetano Veloso, na qual se ouve: “Veados americanos trazem o vírus da aids para o Rio no Carnaval”.

Jardim reage: “Caetano tem razão em quase tudo, exceto quanto ao fato de que não foram os americanos que trouxeram o HIV para o Rio de Janeiro. Ao que tudo indica, os brasileiros foram buscar o vírus em Nova York”. O que encobre esse “ao que tudo indica”? Assim como foi analisada a expressão “grupo de risco”, os subterrâneos dessa narrativa devem ser devassados.

Dito isso, devo confessar meu amor pelos vírus. Eles são uma civilização. Nós optamos pela consciência, eles não. São seres “inintencionais”. O que não os impede de desenvolver complexas estratégias de expansão. Aproveitam-se de nós não só como hospedeiros e meios de transporte, como usam os nossos aviões, carros, valem-se de todo evento que desloca gente. Quando viajamos, pensamos que o essencial da ação é nosso deslocamento de um ponto a outro, mas isso é apenas nosso ponto de vista. Nessa viagem, desenvolve-se também uma outra ação essencial. Numa dimensão diferente: a dos vírus. 

Jardim escreve: “Ocorreu uma virada na economia mundial com a invenção dos pneus infláveis. A borracha, que existia em abundância nas selvas africanas, passou a ser motivo de grande cobiça. Uma significativa transformação social e demográfica ocorreu nessas regiões, com efeitos específicos na propagação da aids”. 

Enquanto o capitalismo explorava loucamente a extração da borracha, o HIV consolidava suas posições. São duas realidades paralelas, cuja conexão percebemos somente quando adoecemos. No século 19, arqueólogos europeus foram contaminados pelos bacilo da tuberculose que se encontravam na superfície de múmias — à espera deles, havia séculos. O tempo da doença é um, o tempo do vírus é outro.
 

Livros que ajudam a entender a aids

Eduardo Jardim

Há uma longa lista de livros que tratam de HIV/aids, alguns indispensáveis. Aids e suas metáforas (1988), de Susan Sontag, é um clássico, assim como Os homossexuais e a aids: sociologia de uma epidemia (1988), de Michael Pollak. Produção volumosa é a de depoimentos, como o de Alain Emmanuel Dreuilhe — Corpo a corpo: aids, diário de uma guerra (1987) — e o de Hervé Guibert — Para o amigo que não me salvou a vida (1990). 

As entrevistas de Daniel Defert, destacado militante francês, são muito relevantes. Foram reunidas em Une Vie politique (Uma vida política, 2014), ainda não traduzido para o português. Recentemente, o médico e militante da causa anti-aids Arthur J. Ammann publicou Lethal decisions: the unnecessary deaths of women and children from HIV/aids (Decisões letais: a desnecessária morte de mulheres e crianças por HIV/aids, 2017), com um histórico da epidemia e de seu enfrentamento. Já o ponto de vista dos militantes é bem representado por David France em How to survive a plague: the story of how activists and scientists tamed aids (Como sobreviver a uma praga: a história de como ativistas e cientistas domaram a aids, 2017). 

No Brasil, foi feita extensa pesquisa por iniciativa do Ministério da Saúde: Histórias da aids no Brasil, 1983-2003 (2015), em dois volumes, aborda as respostas do governo e da sociedade ao problema, sob a responsabilidade de Lindinalva Laurindo-Teodorescu e Paulo Roberto Teixeira. 

Alguns escritores brasileiros se destacam: Herbert Daniel e Richard Parker (Aids, a terceira epidemia, 1991), Caio Fernando Abreu (Os dragões não conhecem o paraíso, 1988), Jean-Claude Bernardet (A doença: uma experiência, 1996), Silviano Santiago (Keith Jarrett no Blue Note: improvisos de jazz, 1996) e Bernardo Carvalho (Aberração, 1993). 

Há ainda a coletânea de poemas Tente entender o que tento dizer: poesia + HIV/aids (2019), organizada por Ramon Nunes Mello, e a nova edição de Devassos no paraíso (2018), de João Silvério Trevisan, que traz informações sobre o contexto brasileiro.
São, cada um a sua maneira, livros que ajudam a desconstruir a muralha de estigma que os anos ergueram em torno da doença.

Quem escreveu esse texto

Jean-Claude Bernardet

Professor, roteirista e crítico de cinema, é coautor de O autor no cinema (Edições Sesc).