Psicologia,
Interrogando a sacanagem
‘Alguma vez é só sexo?’ explora significados que atribuímos aos encontros sexuais e lembra de afetos menos nobres que compõem o reino do tesão
08nov2024Vamos começar pelo final. Até porque é aí que muitos de nós queremos chegar quando pensamos em sexo: no alívio que vem depois do clímax. Nos últimos parágrafos de Alguma vez é só sexo?, o psicanalista britânico Darian Leader encerra sua sessão de 208 páginas com um argumento afiado: toda vez que reduzimos o sexo a uma questão de prazer e satisfação, deixamos de repensar o que é sexo e até mesmo imaginar tudo aquilo que poderia ser. O spoiler aqui é brando, até porque já está no título. E, como em qualquer relação erótica, no livro de Leader, o durante é a melhor parte.
Alguma vez é só sexo? explora as origens do desejo e o significado que atribuímos aos encontros sexuais, nos lembrando sempre da considerável quantidade de afetos negativos e partes menos nobres de nós que compõem o reino do tesão. Por mais idealistas ou românticos que tentemos ser, não há sexualidade sem medo, ansiedade, ausência, agressividade, tristeza, ódio, culpa e uma infinidade de formas de manipulação. Faz sentido que um dos sinônimos mais comuns do sexo seja a palavra “sacanagem”.
O autor nos conduz por um percurso fascinante e bem embasado para mostrar como sexualidade, sofrimento e satisfação estão intimamente conectados. Afinal, sexo é um alívio que também nos atiça, uma experiência desorganizadora e que também pode nos ajudar a estabelecer limites. Ou rompê-los de vez. Sexo é uma liberdade que também nos aprisiona, prazer e desprazer dançando um tango perigosamente apaixonado. No final das contas, sexo talvez seja uma das experiências mais avassaladoras de ambivalência da condição humana. Sacanagem mesmo seria abreviar tanta coisa em ótica simplista de “é só sexo”.
“Só”, a propósito, é uma palavra curiosa do título. Há uma dimensão inevitável de solidão em todas as relações, inclusive no campo sexual. Até porque não há complementaridade ou encaixe perfeito, como nos ensinou Lacan, numa de suas retumbantes frases: “a relação sexual não existe”.
No entanto, essa solidão também antagoniza com um hiperpovoamento, uma quantidade considerável de gente que está presente na nossa mente toda vez que estamos supostamente “só” nos entregando aos impulsos da carne. Como escreve Leader: “Mesmo que haja apenas duas pessoas fisicamente presentes, cada momento de um encontro sexual pode ser regido por uma identificação com o outro participante, como se a pessoa olhasse através dos olhos dele”.
Por um percurso fascinante, o autor mostra como sexualidade, sofrimento e satisfação estão conectados
Quando vamos para cama, nunca estamos só a dois — ou a três, a quatro, quantos couberem por aí. A cultura também entra na farra. Estamos sempre no cruzamento entre fazer o que bem entendemos com nossos corpos e a performance dos modelos sociais estabelecidos, ou seja, a repetição dos roteiros sexuais. Roteiro aqui como um script que dirige o que pensamos, sentimos e atuamos, uma espécie de prescrição cultural que nos diz, muitas vezes inconscientemente, com quem, onde e o que devemos fazer quando o tesão bate à porta. Topar ou mesmo negar tais roteiros dá muito trabalho. Desconhecê-los, talvez mais ainda.
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Não é por acaso que essa radical experiência de não saber é tão desconfortável para muitos. Com uma frequência maior do que gostaríamos de admitir, não nos damos conta das tantas experiências emocionais que vivemos em uma relação sexual. Da mesma forma, também não nos damos conta de nossas correntes eróticas e de como as diferentes partes do nosso corpo respondem ao corpo do outro. Nem todo mundo consegue lidar com tanto mistério, imprevisibilidade e flerte com o descontrole. Afinal, o sexo é mesmo um encontro de multitudes. Inclusive com a nossa própria; com o fato de que não temos lá tanta ciência do que pulsa em nós. Como sentenciou Freud, “o eu não é senhor em sua própria morada”.
Sustentar perguntas, bancar o incômodo do não saber e até mesmo certo apreço que muitos temos pelas partes menos limpinhas da sexualidade são grandes desafios, ainda mais considerando as mudanças radicais que impactaram as relações e o tesão nas últimas décadas. Para listar algumas: a intenção de igualdade no casamento, a implosão da soberania da monogamia, mudanças nos papéis de gênero, o impacto da tecnologia — dos aplicativos aos sex toys —, o movimento #MeToo, os efeitos do movimento lgbtqia+ e o alargamento do que cada um tem o direito de fazer com seu corpo. E, claro, a pornografização da intimidade; a lista é vasta. Tudo isso a uma velocidade alucinante.
De luzes apagadas
Se a obscuridade transborda na nossa vida mental, na sexualidade não é diferente. Talvez por isso que tanta gente só consiga topar sexo de luzes apagadas, ou outros só banquem o tesão em condição de anonimato. Nada de intimidade aqui: simplicidade e controle como mantras, aquela ideia tão popular de “sexo como higiene”, uma espécie de sexualidade que tenta domesticar impulsos e transformar orgasmos em break no lugar de pequena morte. Será que dá? E o que será que tudo isso tem feito com o sexo?
Parece que nunca tivemos tanto conteúdo erótico disponível — e entretenimento e pornografia nunca estiveram tão misturados. Só em 2023, a receita do OnlyFans, plataforma em que usuários pagam para ter acesso a conteúdo adulto de outros usuários, foi de US$ 1,3 bilhão. Enquanto isso, um em cada quatro brasileiros admite assistir a pornografia durante as horas de trabalho, fazendo do Brasil o segundo consumidor no ranking mundial, segundo pesquisa Kaspersky Lab/uol.
Mas ainda que o sujeito contemporâneo, em sua condição cronicamente on-line, fale, pense e consuma tantos produtos e conteúdos sobre sexo, nas clínicas e nas redes fala-se sobre um apagão sexual, especialmente entre populações mais jovens. Boy sober, abstinência voluntária, paixões bloqueadas, miséria afetiva: é inevitável assumir que tem algo estranho no ar.
Nesse mar de incertezas, Leader se mantém fiel à psicanálise. Mas pulando a cerca de vez em quando para nos trazer notícias de outros campos do pensamento a respeito da sexualidade. Em um tempo tão povoado por respostas imediatas, coaches de TikTok e fórmulas mirabolantes, ele se orgulha de sua “fidelidade às perguntas” — seus títulos incluem O que é loucura? (2013) e Why Can’t We Sleep? (Por que não conseguimos dormir?, sem tradução, 2019). Quem sabe a interrogação seja uma forma mais interessante e menos sofrida de encarar nossas relações. O que mais poderíamos esperar do sexo além de apenas sexo?
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