Direito, Medicina,

Doença institucional

Coletânea apresenta propostas para reduzir as distorções causadas pela judicialização da saúde

08nov2018

Eventos recentes da política brasileira colocaram a figura mais prosaica do universo jurídico, o juiz, sob as luzes da ribalta. Quando se pergunta qual é o papel do juiz, muitos responderão, corretamente, que as decisões judiciais têm o dever de aplicar imparcialmente a lei, resolver controvérsias e promover algum critério de justiça em casos concretos.

Dirão ainda que a função do juiz é promover os direitos garantidos pela Constituição e negados pelo mundo real: deveria ordenar a prestação de serviços prometidos e não executados, decidir pela construção de hospitais e escolas planejados e não concretizados, ordenar a prisão dos corruptos que desviam recursos públicos para fins privados, e assim por diante. O imaginário popular foi sequestrado pela figura cativante e messiânica do superjuiz.

Judicialização da Saúde: a visão do Poder Executivo, coordenado por Maria Paula Dallari Bucci e Clarice Seixas Duarte, questiona a figura do superjuiz na área da saúde. No fenômeno conhecido como judicialização da saúde, juízes aceitam, com grande frequência, pedidos individuais que obrigam o Estado a fornecer diversos tipos de tratamentos e medicamentos com base no direito à saúde previsto na Constituição de 1988: “A saúde é direito de todos e dever do Estado”. O fenômeno é aplaudido pela maioria, pois retrataria um Judiciário socialmente sensível, atento a injustiças e que defende o direito do indivíduo perante o Estado omisso.

O fenômeno que parecia ser a solução de um problema crônico, no entanto, “tornou-se sintoma de uma doença institucional”. Para exemplificar essa afirmação, Maria Paula Dallari Bucci cita as 13 mil decisões judiciais ordenando o fornecimento, pela Universidade de São Paulo, da fosfoetanolamina, mais conhecida como a “pílula do câncer”. Sobre a fosfoetanolamina, a autora explica: “A substância não é medicamento, não tem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) nem percorreu as etapas de pesquisa em animais e pesquisa clínica que se exigem para sua adoção terapêutica em seres humanos. Não há certeza de sua eficácia […]. Também não há segurança em relação à sua toxicidade”. Nesse caso, como diz a autora, não teria sido a ciência que descobriu a cura do câncer, mas o próprio Judiciário.

As decisões só atendem à parcela da sociedade com recursos para demandar atuação jurisdicional 

Pesquisas empíricas demonstram que a judicialização excessiva da saúde pode ser um desserviço à gestão justa e eficiente da política pública. As decisões judiciais atendem somente a uma parcela pequena da sociedade — a parcela que possui recursos para demandar atuação jurisdicional. E, o que é mais grave, desconsideram e não quantificam o impacto orçamentário que a inclusão de todo e qualquer tratamento tem para os cofres públicos. Em certas circunstâncias, muito comuns nos casos que demandam prestações estatais à luz do direito à saúde, a generosidade judicial produziria injustiça social, não o contrário.

O livro, no entanto, percorre outro caminho. Sua originalidade está na pergunta: como reduzir as demandas judiciais na área da saúde? Para responder a essa indagação, os diversos artigos que compõem o livro passam a olhar para o Executivo, o responsável pela concretização dos direitos previstos na Constituição por meio de políticas públicas. Faria sentido examinar a qualidade das regras e dos mecanismos à disposição do público para obtenção de medicamentos e tratamentos de saúde. Em vez da salvação judicial num caso concreto, os olhos do jurista devem se voltar à política pública.

Clarice Seixas Duarte explica essa mirada: “O deslocamento do foco de pesquisa para a perspectiva da administração pública foi acompanhado pela escolha de uma política específica para o aprofundamento da análise: a Política Nacional de Medicamentos (PNM). Na origem da escolha está o fato de grande parte dos medicamentos pleiteados em ações judiciais estar nas listas que compõem essa política. Diante dessa constatação, o grupo julgou oportuno investigar as causas que geram as dificuldades de acesso por parte da população a um benefício que está previsto em uma política pública estabelecida. Buscou-se identificar aspectos que podem facilitar a concessão do medicamento pleiteado, evitando que um problema de insuficiência de gestão administrativa se transforme em obstáculo à satisfação de um direito e gere uma demanda judicial desnecessária”.

A intenção propositiva é das grandes qualidades do livro. Dentre as propostas apresentadas estão: reforçar uma fase pré-processual focada nos usuários e suas necessidades, ampliar os canais de comunicação entre os diversos atores envolvidos na efetivação do direito à saúde, analisar exemplos de boas práticas na área, como o Comitê Interinstitucional de Resolução Administrativa de Demandas da Saúde (Cirads), e a formulação de Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas, que estabelecem um processo de tomada de decisões mais transparente e democrático sobre a política de saúde.

O livro não cai na armadilha de colocar os juízes como mocinhos, mas tampouco os imagina como vilões da política de saúde. O Judiciário tem um papel central na concretização dos direitos fundamentais previstos na Constituição. Mais do que recusar qualquer papel judicial nesse terreno, o livro tenta chacoalhar certo senso comum e oferecer um olhar crítico para as políticas de saúde do governo, com o objetivo de aperfeiçoá-las. Não há lugar para o superjuiz heroico, mas tampouco para a complacência judicial. Cabe ao Judiciário entender as especificidades dessa política pública e examinar qual a melhor contribuição que poderia dar para o seu aperfeiçoamento, não para a sua distorção.

Quem escreveu esse texto

Danielle Hanna Rached

É autora de O devido processo legal na Agência Nacional de Telecomunicações (Juruá).