Poesia,
Um longo poema emaranhado
Livro de estreia de Stephanie Borges trata de cabelo, corpo e a experiência de ser uma mulher negra
01nov2019 | Edição #28 nov.2019O poema longo, em Talvez precisemos de um nome para isso, livro com que Stephanie Borges conquistou o 5º Prêmio Cepe Nacional de Literatura, em 2018, organiza-se como que um espaço tensionado por contingências que se atravessam mutuamente. Uma contingência dentre tantas outras, o próprio texto, da primeira à última linha, equilibra-se, com evidente gosto pelo risco, entre a crítica ao controle racista/sexista do corpo e do cabelo das mulheres negras, uma coloquialidade pop e certo lirismo desconfiado de si mesmo e de tudo o que, para a maioria dos e das poetas em atividade no Brasil, ainda hoje, parece definir o “poético”.
Em um tuíte postado no dia 23 de maio, Stephanie dá a seguinte resposta a alguém que pergunta a ela sobre o lançamento da obra — “Sobre o quê, seu livro? Qual gênero? Conte mais… Me conte tudo, menos o final” —: “É um livro de poesia. Um poema longo, dividido em dez partes, sobre o cabelo, o corpo, a experiência de uma mulher negra. E mitos, arquétipos e imagens sobre beleza e poder”. Não seria pouco se o livro em questão tratasse “apenas” desses temas, mas ele também trata, com astúcia de trikster — não por acaso, Exu, o orixá da comunicação, é mencionado numa passagem do poema — , de muitos outros problemas ético-estéticos, desses que a pressa, a preguiça e a imperícia crítico-analítica que caracterizam o tempo atual, entre nós, transformam em assunto menor, não merecedor de maior atenção.
Cito a resposta acima porque leio nela a afirmação da disponibilidade de Stephanie Borges para uma conversa pública sobre a arte da palavra que leva em conta não um(a) “leitor(a) ideal” de poesia, mas aquele(a) que quer saber “tudo” sobre um livro, “menos o final”.
Afropolita
E o “tudo”, no caso de Talvez precisemos de um nome para isso, é que se trata de “um livro de poesia” — um “poema longo, dividido em dez partes”, mais um vasto et cetera que sinaliza o ângulo a partir do qual a poeta dispara as suas flechas sígnicas: o de uma jovem poeta e intelectual negra, cosmopolita (ou “afropolita”?), leitora e tradutora da ensaísta bell hooks e das poetas Claudia Rankine e Audre Lorde, o que, por si só, já a distingue no elitizado ambiente mental da poesia brasileira dita contemporânea, em que predominam as sinhazinhas, os sinhozinhos e suas tediosas emulações do que seria uma “poesia culta”, a ser difundida interpares.
A poeta permite ao seu texto — vale dizer, ao seu emaranhado de palavras — que ele, aqui e ali, ouse até mesmo narrar, sem deixar de ser poema
Dessa disposição dialógica decorre, por certo, a opção da poeta pelo poema longo, uma das contingências a que fiz menção na abertura deste escrito: encarado como um bicho de sete cabeças pelas gerações que se iniciaram poeticamente nutridas pela didática concreta, Stephanie faz do espaço textual expandido um uso bastante livre e seguro. Dividindo-o em dez partes, a poeta permite ao seu texto — vale dizer, ao seu emaranhado de palavras dispostas na página como cabelos — que ele, aqui e ali, ouse até mesmo narrar — isso que a poesia do Ocidente europeu já não pode fazer desde o século 19 — sem deixar de ser poema. Narrar, por exemplo, o que se passa dentro de um poema. Ou dentro do ori (termo da língua iorubá que significa literalmente “cabeça”; no candomblé, é uma referência ao orixá pessoal de cada um) de uma mulher negra que escreve da perspectiva de quem parte (“todos esses anos/ querendo ir embora antes/ ir/ e estranhar/ o aprendizado da permanência”).
Encerro esta rápida leitura admiradora com um dos meus trechos preferidos de um livro de estreia muito bem projetado e realizado, cuja leitura eu recomendo com entusiasmo: “circunscrever o vazio/ e outras coisas ainda não/ nomeadas, não porque haja/ segredo ou mistério mas/ de tão comuns/ mal se olha// talvez a repetição abra/ uma brecha para o esquecimento/ observar a duração até/ um tempo incontável/ em espirais/ se tornar inútil// quem sabe a noção da utilidade/ se desfaça sem pronome/ e não mais/ o símbolo recorrente/ você quer tocar e ver?”.
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Matéria publicada na edição impressa #28 nov.2019 em outubro de 2019.
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