Poesia,

O poema é uma ilha

Ao juntar os versos de Safo e a situação trágica dos refugiados na Europa, Ana Martins Marques alia política e poética com maestria

01dez2023

Moria, na ilha grega de Lesbos — tema do poema de Ana Martins Marques —, era “o pior campo de refugiados do mundo”, dizia uma reportagem da BBC de 2018. O lugar, projetado para 2 mil pessoas, chegou a abrigar 12 mil imigrantes, dentre os quais 4 mil crianças. A maioria dos ocupantes não tinha acesso a eletricidade, água potável, nem onde se abrigar.


De uma a outra ilha, de Ana Martins Marques

O campo foi inaugurado em 2015 como um abrigo temporário para refugiados indo em direção à Grécia continental. No entanto, com a “política de contenção” da União Europeia, que determina que refugiados não sejam levados ao continente, uma porcentagem ínfima de pessoas foi realocada. As demais permaneceram no limbo de Lesbos. A ilha ficou, então, conhecida como um cemitério de coletes salva-vidas alaranjados, abandonados por imigrantes que chegavam pelo mar.

Um incêndio, em 2020, fez com que os refugiados fossem levados ao continente, e, em 2023, Moria passou por uma transformação: tornou-se um centro cultural. “Protegemos as fronteiras do nosso país, tanto por terra quanto por mar, e reduzimos mais de 90% a chegada de imigrantes ilegais às ilhas do leste do mar Egeu. Provamos que o mar possui fronteiras, e essas fronteiras devem ser vigiadas pelo Estado grego”, disse o primeiro-ministro da Grécia Kyriakos Mitsotakis à Ansa.

Creio que Ana Martins Marques olharia para essa declaração com um tanto de incredulidade, pois, de alguma forma, ela diz o contrário no longo poema De uma a outra ilha, plaquete lançada pelo Círculo de Poemas e votado o melhor livro do ano e o melhor de poesia pelos colaboradores da revista Quatro Cinco Um.

A morte é um mal que acometerá a todos nós, mas não deveria ocorrer atravessando o mar revolto

Fronteiras são divisões arbitrárias criadas pelo ser humano ao longo da sua história, e elas mudam conforme o imaginário de cada época. São tão fluidas quanto as águas do mar — e como os versos de Safo (610–570 a. c.), a poeta grega que colocou Lesbos no imaginário da cultura europeia e cuja maioria dos poemas só existe na forma de fragmentos. Fragmentos estes que, quando reunidos em papiros ou pedaços de cerâmica, formam uma espécie de arquipélago poético. Foi ainda a imagem de um desses fragmentos que Marques escolheu para ilustrar seu texto, seguindo a temática das plaquetes deste ano da Círculo de Poemas, que convidou autores a escrever poesia sobre mapas de lugares reais ou imaginados.

A imagem fragmentária dos poemas de Safo é também, como escreve o poeta Guilhermo Gontijo Flores no posfácio, uma forma de lembrar que “a velha Hélade, assim como boa parte da Grécia atual, era, na verdade, um arquipélago, um conjunto imenso de ilhotas em diálogo constante entre si”. Aqui, “ilha”, ao contrário de significar “isolamento”, traz a ideia de interação “a partir de abismos marinhos”. “Helenos também, pra quem não sabe, eram, como agora são os gregos, bastante orientais”, continua Flores, que traduziu os poemas completos de Safo para a Editora 34. A geografia, por fim, está sempre em disputa.

Apesar da fluidez abstrata dessas divisórias, elas ganham realidade palpável e podem ser mortais num mundo em que seres humanos são considerados ilegais. E Marques sabe disso:

Quando a fronteira é o mar
movente
verde violento
subindo e descendo
com a maré
quando uma árvore não pode crescer
sobre a fronteira
quando não só a nuvem não só o pássaro
também o peixe pode atravessá-la
e uma jovem com os cabelos
flutuantes
num colete salva-vidas
que não atendia
às normas de fabricação

De uma a outra ilha reúne a poesia fragmentada de Safo e a situação trágica dos imigrantes na Europa, valendo-se de uma variedade de fontes — de referências a Anne Carson e estudos sobre poesia grega a reportagens na imprensa e páginas da Wikipédia. Com isso, a autora atinge uma espécie de Olimpo literário: faz uma poesia política e engajada sem cair no didatismo ou na militância ingênua, e sem abrir mão do seu sofisticado estilo poético.

Enraizados na errância

Marques nomeia alguns dos refugiados que estavam em Moria: Valencia, Amir, Ali Zaid, Samir Alhabr. É um modo de fazer com que não sejam esquecidos. Lembra a obra À tous les clandestins [Para todos os clandestinos, 2019], da dupla Patricia Gómez e María Jesús González, em exibição na 35ª Bienal de São Paulo. As artistas recuperam as paredes de uma antiga escola que virou um centro de detenção de imigrantes em Nouadhibou, na Mauritânia. Nas paredes, podem-se ler mensagens dos que lá ficaram confinados: “We are not slaves” [Não somos escravos], “Toutes change, les imbeciles ne change pas” (Tudo muda, os imbecis não mudam nunca). São os “enraizados na errância”, como descreve Marques no livro.

O tema dos exílios, migrações e deslocamentos forçados continua — e infelizmente continuará — cada vez mais atual. Os ataques de Israel à Faixa de Gaza deixam, entre os sobreviventes, milhares de palestinos (a maior população refugiada do mundo) sem ter para onde ir. O aquecimento global já faz suas vítimas, os “refugiados climáticos”. Marques chama, então, a poeta que dedicou versos às mulheres por quem se apaixonou:

Safo diz
— segundo Aristóteles —
que morrer é um mal;
assim julgam os deuses
já que eles não morrem

A morte é um mal que acometerá a todos nós, mas deveria ocorrer em condições outras que não atravessando o mar revolto. Aconteceu com Alan Kurdi, o bebê sírio de dois anos cujo corpo foi encontrado, em 2015, nas areias de uma praia turca, quando tentava atravessar o mar Mediterrâneo para atingir terras europeias ao fugir da guerra na Síria. O poema de Marques faz um apelo por uma vida e uma morte dignas:

Esses jovens, homens e mulheres,
deviam poder quebrar-se
gradualmente contra o mundo
e não ser lançados assim
ao mar escuro
com seus coletes alaranjados
faiscando
desabando depois na praia
com o baque de um jornal
arremessado sobre o muro
por um motociclista apressado
ininvelhecíveis 

Quem escreveu esse texto

Paula Carvalho

Jornalista e historiadora, é autora e organizadora de ireito à vagabundagem: as viagens de Isabelle Eberhardt (Fósforo).