Poesia,

Queria ser transparente

Escrito durante os anos de chumbo da ditadura militar, e atravessado por dúvidas e ambiguidades, livro de Heloisa Jahn trouxe um olhar feminino à literatura marginal

01fev2024 • Atualizado em: 01ago2024 | Edição #78

Heloisa Jahn subiu aos céus, virou estrela. Uma pessoa doce, de pouco falar e mais ouvir, que deixou muitos amigos por onde passou. Poliglota, entrou para a carreira editorial em meados dos anos 80 e, em paralelo, destacou-se no ofício da tradução. Sua atenção pelos outros era sincera, acolhedora, sem deixar de dizer o que pensava. Sabia ser meiga e conselheira.


Palindroma, de Heloisa Jahn, oscila entre o humor, a descrença e a procura de sinais de encantamento

Outra qualidade da Helô estava na capacidade de editora sensível, em especial no difícil campo da poesia. Recebia dos autores um conjunto de poemas em potencial, pretenso livro ainda desorganizado; outras vezes, o material se apresentava organizado demais — e poético de menos. Em todos os casos, sua leitura revelava-se atenta, respeitosa com o texto alheio, sem receio de questionar os versos excessivos ou de propor variantes para palavras inexatas. Sutilezas que sempre fazem diferença no resultado final. E que devem ter contribuído para a sorte dos poetas por ela editados.

Perguntada se escrevia poemas, desconversava. Para algumas pessoas chegou a confidenciar que tinha uns escritos de juventude, mas não mostrou a ninguém, nem teve o ímpeto de publicá-los em vida. Passadas cinco décadas, sabemos agora que ela guardou na gaveta um primoroso livro, criado em 1972 em parceria com o artista gráfico Carlos de Moraes, autor das imagens que acompanham os textos.

A requintada edição de Palindroma vem a lume pela Quelônio e obedece o projeto original de manter as folhas soltas e cambiáveis. A ideia do livro-jogo deve ter sido inspirada na leitura de Julio Cortázar, de quem Heloisa veio a ser amiga e correspondente. Na ocasião, ela tinha 25 anos e estava em viagem pela Europa. Mas a poesia já conquistara lugar cativo em sua vida. Com essa idade, sabia que o jogo de palavras exige delicadeza e mergulho nas coisas difíceis. Como dá a perceber a evocação precoce das “dores que afligem”, em forma de soneto, ou nos versos livres que registram a “saudade de coisas mortas/ coisas passadas vividas/ reverdadeiras perdidas”. Em outros momentos, é a ironia que emoldura o dizer poético.

A diversidade formal dos textos acompanha o estado de espírito do sujeito lírico, oscilante entre o humor, a descrença e a procura de sinais de encantamento: “A cidade cerca o parque./ Como não contá-la, se nela me perco?/ Procurando o rumo de um tempo mais claro/ boca aberta em riso.” A seu modo, na Europa, ela se permite uma particular flânerie.

Os versos ecoam um olhar sensível que se pergunta por seu lugar no mundo, num contexto que supõe a Guerra do Vietnã e as revoltas de 1968. De um lado, abraça o grito libertário dos costumes e das amarras sociais; de outro, encontra o gosto acre da melancolia: “Mergulho sem olhos./ Me atiro no tempo em que vivo, perdida/ me firo e não me lembro”.

    
Ilustrações de Carlos de Moraes

E é nesse ponto que sobressaem as qualidades da jovem poeta, sobretudo se for compreendida à luz do seu tempo. Pois já no início dos anos 70 alguns autores iniciantes mostravam forte inquietação com o momento político-social do país, desejosos de maior liberdade moral e sexual. Surgia então a chamada poesia marginal.

Esse movimento, porém, não representou um coletivo organizado e coeso, configurando-se como uma corrente de renovação poética entregue ao experimentalismo formal e comportamental, em simultâneo às transformações na música, no teatro e nas outras artes. Por meio de saraus e apresentações públicas, os poetas abraçaram a “estética da curtição”, como veio a ser chamada por Silviano Santiago.

Procura

Hoje é possível perceber o quanto a marginalidade em questão expressou um ponto de vista majoritariamente masculino, com foco nos temas sociais e comportamentais, em sintonia com o pensamento de esquerda, porém sem deixar muito espaço para a expressão feminina. Tema que vai ganhar evidência na obra de Ana Cristina César, estreante apenas no final da mesma década. A voz da poeta suicida inovou com uma mudança radical de forma e conteúdo, capaz de exprimir uma ambiguidade amorosa e uma suspensão de valores, algo um tanto distante da dicção afirmativa e máscula de nomes como Cacaso, Chacal e mesmo do neobarroco Waly Salomão.

Em meio a tal contexto, vale a pena focalizar alguns poemas de Heloisa Jahn, como este:

Se eu vivesse sozinha seria um animal./ Sei muito bem que não se deve viver sozinho./ Muita gente já disse./ Para os outros/ Só sei fazer o teatro de mim mesma/ porque eu queria, como eu queria ser transparente/ até o detalhe./ O teatro saiu mau, a crítica não aprova./ Bom mesmo é ficar no sol, pensamento frouxo./ Será que sim será que não.

Aqui, o tom confessional, abraçado à oralidade, incorpora o melhor espírito da marginalidade ao revelar a subjetividade de alguém empenhado no autoconhecimento, sem recusar o caminho das incertezas. E o faz dentro de uma perspectiva nova em relação à tradição modernista, dedicada aos temas sociais e do cotidiano. Ao assumir o olhar feminino, a partir das margens, o umbigo do sujeito lírico se coloca em estado de risco e não se intimida em admitir que “o teatro saiu mau”.

Em outros versos, a contradição emerge em imagens aparentemente desconexas: “Estou só como um carneiro./ Se eu quiser, chuto uma pedra./ Vivo com muito interesse”.

Essa poética marcada pela curiosidade de sabores e saberes é a que merece mais atenção na atualidade

A mescla imprevista de solidão e interesse abre espaço para uma procura, marcada pelo estímulo das pequenas atenções. Chutar a pedra ou não, vai depender do instante e da vontade. Afinal, são tantos os sentimentos misturados… E a poesia, em vez de acalmar as inquietações da intimidade, evidencia os desejos contraditórios e incompletos. Artes de Palindroma.

Essa poética marcada pela curiosidade de sabores e saberes — atravessada de dúvidas — é a que merece mais atenção aos olhos da atualidade. Impressiona ver como Helô foi certeira em sua precocidade, ao escrever poemas em que o olhar feminino se interroga e deixa a expressão em aberto, assumindo a ambiguidade.

Nesse sentido, pode ser considerada uma poeta pioneira, que abriu espaço para a dimensão íntima da mulher, explorando imagens para além dos estereótipos e das facilitações. E sem ocultar os vacilos. Sina que vai marcar a poética de Ana C. e iniciar, a partir dos anos 80, uma vertente fértil e renovadora da poesia brasileira, com repercussão nas melhores poetas do nosso século.

Helô amadureceu e descobriu a arte das palavras durante a ditadura militar, mesmo período em que eclodia no estrangeiro certo relaxamento de costumes. A viagem à Europa deu a ela a oportunidade de um mergulho poético corajoso, criativo e intenso no registro de uma ótica pessoal, aberta ao coletivo. Lamenta-se que esses poemas tenham ficado na gaveta por tantas décadas; mas pior teria sido se permanecessem inéditos e desconhecidos. Por isso mesmo, a edição deve ser comemorada.

Quem escreveu esse texto

Fernando Paixão

É escritor e professor de literatura do IEB-USP. É autor de Acontecimento da poesia (Iluminuras, 2019).

Matéria publicada na edição impressa #78 em dezembro de 2023.