Poesia,
Minha voz, muitas vozes
Bruna Beber mergulha em reminiscências à procura não da nostalgia, mas do desconcerto, em ‘Veludo rouco’
06dez2023 | Edição #77“O coração é o povoado da memória”, diz Bruna Beber no início de “Casarões”: “Aparentado com o fígado é o sentimento/ a indignação ocupa o estômago/ mas o desejo faz do pulmão um pomar”, segue a poeta, antes da indagação: “A cabeça é inquilina/ ou proprietária do corpo, e quem morre primeiro?”. As pistas para as respostas estão espalhadas por este e outros poemas de Veludo rouco, reunião de versos forjados, para lembrar Ferreira Gullar, “na vertigem do dia”.
Veludo rouco, de Bruna Beber, une recordações da Baixada Fluminense com impressões de São Paulo, onde a autora vive há dezesseis anos
O passado da escritora nascida em 1984 no estado do Rio de Janeiro está presente nas (muitas) vozes familiares que incorpora aos versos impregnados de cheiros, canções populares, dizeres transfigurados, simples certezas de pessoas próximas como Tia Celi, Dona Quita, Lourdinha, Dona Brélia, Dona Landa, Márcio & Márcia, Dona Maria. “A vida é água purinha/ banho, bibida e laranja”, ensinam as mais velhas. E a poeta escuta.
Avós da escritora, Landa (“que me ensinou a atravessar a rua”) e Maria (“por ter molhado minha chupeta na cachaça”) haviam aparecido na introdução de um de seus livros anteriores, Rua da padaria (Record, 2013), dedicado também “aos ladrões de goiaba de quintal”. Tarefas cotidianas, como ir ao açougue ou molhar as plantas, se transfiguravam em versos como os de “Esquina circunferência”: “A velha passeando com o cachorro/ os prédios assistem aos ônibus/ indo para o mesmo lugar”. Só que, dez anos atrás, predominava o leve desespero de um certo romantismo juvenil (“quanto falta pra gente se ver/ e nem lembrar que um dia se conheceu”), pontuado por dramaticidades (“chumbo que respiro/ minha saudade te apodrece”) e constatações (“não é todo dia que voltamos a ter treze anos”). Agora os sentimentos são mais vastos; abraçam outras emoções, promissões, cidades.
Dividido em quatro partes — ou “quatro rumos”, como define a autora — Veludo rouco amplia o repertório de Beber ao aliar o universo de Rua da padaria ao de outros livros, a exemplo dos inventivos jogos de palavras e cruzamentos de lembranças dos “poemas de muitas casas” reunidos em Ladainha (2017). Há o retorno do recurso das repetições ritmadas, como em “O sol e suas cascas”: “Centelha descascando luz descascando madrugada descascando alvorada descascando arrebol descascando amanhecer…” Há poemas curtíssimos (“De dia refri/ de noite refrão”), há narrativas em prosa que parecem um tanto deslocadas do conjunto de versos. Há reconfigurações da topografia (“Toda montanha é uma onda parada”, observa em “Milagre dos peixes”), há confissões adolescentes (“A primeira menina que me deu um beijo na boca — intuindo, acolhendo um segredo a sete chaves — se chamava Fernanda”) movidas pelo “calor, cheiro, vertigem da imaginação”.
Mas o que realmente chama atenção no livro é o mergulho em reminiscências distantes e recentes à procura não da nostalgia, mas do desconcerto. Beber vai buscar, no infinito ao seu redor, o que Chacal, no início dos anos 2000, preconizou sobre os que enxergam com “olhos que não usam viseiras”: “Absorvo impressões/ de outros/ que caminharam por mim/ em minha caminhada/ pelos outros/ paisagens urbanas/ suburbanas/ superurbanas/ me constroem/ o tempo todo.”
Hábito da escuta
Ao podcast “Como o poema”, dedicado à poesia contemporânea escrita por mulheres, a escritora contou que a gênese de Veludo rouco vem da oralidade, mais especificamente do hábito da escuta. “Cresci ouvindo histórias e cantigas no bairro de uma cidade [Duque de Caxias] onde ninguém tem o mesmo jeito de falar, a mesma forma de contar uma história, dando muita atenção ao que as pessoas mais velhas tinham para contar, no caldo dessa riqueza cultural muito brasileira. Durante muito tempo eu basicamente ouvi, armazenei e elaborei. E isso foi entrando na minha poesia”, contou.
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Na mistura de Veludo rouco, é possível unir recordações da Baixada Fluminense com impressões de São Paulo, onde a autora vive há dezesseis anos, de olhos e ouvidos abertos aos que circulam pelas ruas e edificações da capital paulista. Resultam da atividade de transeunte da metrópole alguns dos momentos mais fortes da quarta e última seção, “História e geografia”. No poema que intitula o livro, Beber transforma uma curiosidade urbana — uma rua que muda duas vezes de nome — em sucessão vertiginosa de imagens inusitadas, arrematada pelo surgimento inesperado da primeira pessoa misturada a outros eus, pois “ademais todas nós vamos morrer/ espatifadas nas torres duplas, esdrúxulas do Queen Victoria”. Eis um exemplo do que a autora procura e encontra. O alumbramento trazido pelo desconcerto. A graça no ofício.
Beber quer fazer o poema, saboroso e insubmisso, vibrar fora da página, fora da métrica, fora de si
O tom maior do livro não vem da métrica e sim da música. Ao escolher para epígrafe um trecho de “Sorriso aberto”, da cantora Jovelina Pérola Negra (“Tristeza, tristeza foi assim/ se aproveitando/ para tentar se aproximar de mim/ ai de mim/ se não fosse o pandeiro e o ganzá e o tamborim”), a escritora que cresceu ao som de sucessos populares indica um dos rumos de Veludo rouco, gestado depois da perda de pessoas próximas e impactado pelo luto coletivo da pandemia. Ela traz Jovelina para, na luz do repente, ajudar a mandar a tristeza embora. Ou, nos versos embriagados de euforia no poema sintomaticamente batizado de “Medo da morte”: “Brindar os dias que partem de nós como finais.”
Em “Encruzilhada”, poema-síntese das andanças paulistanas, a autora imagina nomes da música, literatura, cinema — Mário de Andrade, Geraldo Filme, Inezita Barroso, Juçara Marçal, Mazzaropi — percorrendo as ruas da Barra Funda atrás de poesia: “Querem versar”. Encerra com a própria incursão pelo bairro e deixa uma pergunta. “Em 2020, Bruna Beber cruza a Vitorino Carmilo de máscara e rasteja/ até o Bar dos Passarinhos/ quer o quê?”. Arrisco resposta. Ela quer ouvir. Fazer o poema, saboroso e insubmisso, vibrar fora da página, fora da métrica, fora da poesia, fora de si. Bruna Beber quer decantar as dores do passado e, em viva voz, cantar para subir.
Matéria publicada na edição impressa #77 em novembro de 2023.
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