50 anos da Revolução dos Cravos, Poesia,
Cronista do seu tempo
João Apolinário combateu a ditadura em Portugal e no Brasil, onde deixou versos que entraram para o nosso imaginário
24abr2024 • Atualizado em: 01ago2024 | Edição #80Um dos principais poetas da Revolução dos Cravos, João Apolinário Teixeira Pinto foi um homem de ideias e espírito livres, que combateu a ditadura de Portugal e a do Brasil como poeta, jornalista e jurista. Nos tempos de resistência em Portugal, foi preso e sofreu muito nas mãos do regime. Em resposta aos horrores causados a ele, ao país e na construção da esperança vindoura, escreveu o célebre poema “Aviso aos amantes indecisos”:
É preciso avisar toda a gente
dar notícia informar prevenir
que por cada flor estrangulada
há milhões de sementes a florir
É preciso avisar toda a gente
segredar a palavra e a senha
engrossando a verdade corrente
duma força que nada detenha
É preciso avisar toda a gente
que há fogo no meio da floresta
e que os mortos apontam em frente
o caminho da esperança que resta
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É preciso avisar toda a gente
transmitindo este morse de dores
É preciso imperioso e urgente
mais flores mais flores mais flores
Este poema é o primeiro ato da crônica que se desdobra em forma de poemas de Amorfazeramor, livro que lhe deu enorme prazer de escrever. O romance segue com “Amor”, “Desejo”, “A casa”, “Desamor”, “Abandono”, “Aventuras” e termina com “Amizade”. Apolinário lançou ainda muitos outros livros: Apátridas, Poemas cívicos, O poeta descalço, Eco húmus homem lógico e deixou inédito os Sonetos populares incompletos.
Apolinário tinha um propósito como poeta que era de “ser um cronista do meu tempo”. “Esse é o dever do poeta”, dizia. Ele descreveu com humanidade e amor a resistência à opressão. Formado em direito e jornalismo, valorizava o conceito de liberdade em sentido amplo e dentro dele viveu sua vida. Tornou-se um dos mais respeitados críticos de teatro do Brasil nos anos 60. Sua vasta contribuição com olhar apurado sobre o teatro brasileiro foi consolidada em dois livros pela esposa dele, a historiadora Maria Luiza Teixeira Vasconcelos, minha tia.
Em 2013, ela organizou uma antologia das críticas teatrais do marido em um par de volumes publicados pela editora Imagens, A crítica de João Apolinário: memória do teatro paulista de 1964 a 1971. Os textos foram veiculados no jornal Última Hora de São Paulo. Diz Maria Luiza na introdução:
Produzida num período duro da nossa história recente, esta memória do teatro paulista é ousada e objetiva na expressão das ideias que estavam em contradição com a ordem estabelecida naquele momento histórico: a de não se permitir continuidade da criação e afirmação da cultura brasileira. No teatro houve quem fizesse uma oposição frontal a esse atentado e assim foi reconhecido e valorizado pelo crítico.
E complementa: “Sua opção sempre foi escrever com liberdade, sem possíveis e reais restrições determinadas pelas direções do jornal”. Não era a primeira vez que Apolinário vivia a experiência de escrever para a censura sem alterar suas ideias.
Língua inventada
A liberdade e o bom humor eram caros a Apolinário. Minha tia sempre conta histórias engraçadas dele. Gostava de viajar de carro e, sempre que atravessava uma fronteira, imediatamente falava na língua do país onde estava entrando. Se não soubesse o idioma, não tinha problema. Falava em armênio do século 9 ou 10, obviamente língua criada por ele. Também falava fluentemente sino-armênio e russo-armênio. Usou inclusive sua língua inventada preferida — o armênio do século 9 — para conversar com um policial em Moscou. Precisava comprar rublos. E, sem cerimônia, o policial explicou onde ele poderia achar um câmbio, fazendo todos à sua volta rirem muito.
Nascido em 1924, em Sintra, Apolinário foi correspondente de guerra e fez parte, como tenente do Exército francês, em 1945, do primeiro contingente de jornalistas que testemunhou os horrores da Segunda Guerra Mundial. Isso o marcou profundamente. Em dezembro de 1963, exilou-se no Brasil, onde viveu doze anos por se opor ao regime de António de Oliveira Salazar. No começo de 1975, quando voltou para Portugal, pôde finalmente viver a liberdade que a revolução de 25 de abril de 1974 permitiu. Apolinário amava Marvão, cidadela medieval portuguesa onde passou os últimos anos e morreu, em 1988. Lá, realizou o sonho de morar acima das nuvens.
Tenho lembranças muito ternas da figura dele em minha infância. No momento mais difícil da minha vida, ele me acolheu com enorme carinho. Ao longo dos anos, sempre me recordo de sua vida artística, pois, além de ter sido amigo de Picasso, um dos filhos do poeta, João Ricardo, integrou o grupo Secos & Molhados e gravou alguns de seus poemas no imaginário brasileiro. “O verme passeia na lua cheia”, por exemplo, é um verso dele.
Nesses cinquenta anos de celebração da Revolução dos Cravos, na qual se projetou um mundo lusitano mais democrático e igualitário que sempre se adia, impossível não lembrar do verso: “O que cansa é o diabo da esperança”. João Apolinário? Presente!
Especial 50 anos da Revolução dos Cravos
Especial 50 anos da Revolução dos Cravos realizado com o apoio do Camões Instituto da Cooperação e da Língua e da Fundação Fernando Henrique Cardoso
Matéria publicada na edição impressa #80 em abril de 2024.
Porque você leu 50 anos da Revolução dos Cravos | Poesia
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