Poesia,

Pura fruição

Afiados e divertidos, os versos “menores” da poeta polonesa que recebeu o Nobel em 1996 ganham uma antologia

28fev2019 | Edição #20 Mar.2019

O Brasil parece ter um caso de amor com a poesia de Wislawa Szymborska (1923-2012). Suas duas antologias foram um sucesso por aqui. É uma poesia que vibra entre nós, e isso tanto entre leitores experimentados quanto entre neófitos que, com frequência, caem na esparrela dos versos instagramáveis da vez: truísmo, sentimentalidade pós-irônica, laivos deprimentes de autoajuda. 

A polonesa nunca correu esse perigo. Sua poesia, de comunicação fácil, oscila com inteligência entre a observação dos afetos e a consciência de um peso — cultural, histórico, ético — que somente quem nasceu no Leste Europeu em meados do século 20 poderia articular. Szymborska, que testemunhou a destruição da Europa, pareceu desde sempre atraída pelas notas de rodapé da grande história. Em termos brasileiros contemporâneos, seria um Drummond dublado pela voz de uma Ana Martins Marques. 

Poéticas de divertimento

Riminhas para crianças grandes traz outra faceta da produção da poeta polonesa que sempre recusou a grandiloquência. Como vem elucidado na introdução dessa edição, Szymborska também praticou alguns gêneros menores, formas poéticas de puro divertimento, como as “dasvodcas” (espécie de provérbio alcoolizado), as “moscovinas” (divertido chauvinismo poético), as “melhoríadas” (que parecem pertencer ao gênero do reproche de livro do condomínio), as “altruitinhas” (slogans sardônicos), as “escutações” (prosa indiscreta), os limeriques e as colagens, que nesta edição vêm impressas em uma série de cartões-postais anexados ao livro.

Esteticamente, é como se a revista Coquetel tivesse feito uma oficina com Paulo Leminski. Não são muitos os poetas que descem do salto em nome da pura fruição. A julgar pelos relatos a seu respeito, Szymborska era uma figura adoravelmente excêntrica e vivaz. Nesse punhado de anedotas rimadas, exercita uma encantadora utopia regressiva pela história da poesia.

Nada possível de refundar o mundo, e por isso mesmo um playground para adultos por vezes entediados com as grandes cavilações dos majestosos edifícios da lírica. O álcool, a indiscrição sobre a vida alheia, o patriotismo de opereta, o catolicismo caricato e outros temas que não são caros apenas ao espírito polonês aparecem desfiados com leveza, graça e malícia. E se permanecem assim na tradução (engenhosa, aliás), é de se imaginar como soam para o leitor nativo.

Esses gêneros praticados pela poeta guardam não poucas similitudes com formas e autores da nossa poesia e folclore. Assim, as “melhoríadas” por vezes lembram aqueles ditos que puxam o tecido do símile até desfiá-lo quase completamente: “Melhor assediar a petizada/ que comer aqui perdiz assada”, escreve Szymborska. Tem algo do nosso “mais perdido que cego em tiroteio”.

Já as “escutações” lembram Veronica Stigger, com seu ouvido atento para as muitas banalidades do mal entreouvidas em nossas cidades. São diálogos eivados de nonsense, e quase sempre com uma violência subjacente, muitas vezes dentro da esfera familiar — a esta altura já sabemos que as maiores barbaridades podem sair da boca (ou da caixa de comentários) de nossos parentes mais pacatos.

E parece mesmo ser a violência o cenário por detrás dessas Riminhas. Um pouco como a própria poesia “adulta” da autora, que, mesmo quando debruçada sobre os temas maiúsculos da lírica (amor e morte, em suma), tenta encontrar um tempo para a hora do recreio.

Quem escreveu esse texto

Leandro Sarmatz

É editor da Todavia e autor de Uma fome (Record).

Matéria publicada na edição impressa #20 Mar.2019 em fevereiro de 2019.