Infantojuvenil, Poesia,

O livro vermelho das profissões

O poeta Maiakóvski não gostava de crianças, mas escreveu livro infantil sobre o mundo do trabalho

13nov2018 | Edição #6 out.2017

O poeta do futuro abominava as crianças. Parece ser um desses paradoxos quase atordoantes o fato de que Vladímir Maiakóvski (1893-1930), o grande poeta do novo, o visionário repleto de confiança no porvir do homem soviético, o lírico que se recusava a olhar para trás (“É preciso arrancar alegria ao futuro”) demonstrasse, nas palavras de Roman Jakobson, “uma hostilidade à criança pequena”. 

No ensaio A geração que esbanjou seus poetas, o teórico russo nota o descompasso entre esse Maiakóvski cuja fé na marcha do tempo era absolutamente inquebrantável com sua visão pouco favorável, a Herodes georgiano, a respeito dos pequenos: “Maiakóvski
não reconhece na criança concreta o seu próprio mito do futuro. Para ele, não passa de um novo filhote multifacetado do inimigo”.

Por isso, soa bastante peculiar ler O que vou ser quando crescer?, a bela e competente tradução de Paula Almeida para os poemas, originalmente publicados em 1929, ano em que Maiakóvski, feito um mestre-escola movido a eletricidade socialista, presta-se ao papel de conselheiro profissional para os mais jovens, aqueles que lhe pareciam plenos de futuro. A edição conta ainda com as ilustrações originais de Nisson Shifrin, um desses talentos multifacetados à la Millôr que se espraiou tanto para o livro e o design quanto para a cenografia teatral.

O elenco de ofícios mobilizados pelo poeta é o filé do operoso industrialismo eufórico dos anos 1920 soviéticos. Marcenaria, engenharia, medicina, o trabalho na fábrica, passando pelos meios de transporte como o bonde, o carro, o avião e o barco. Nem sombra do mundo rural. A velha mãe Rússia dos mujiques semi-escravizados, cuja submissão ao dono da terra atravessava gerações, agora era o terreno modernizado para que adolescentes começassem a se preocupar com a vida adulta (“Já vou fazer dezessete anos,/ está na hora de fazer planos./ Onde vou trabalhar, então,/ em qual ocupação?”). Por isso as profissões cantadas pelo poeta são eminentemente urbanas. De preferência, mecanizadas. Não existe futurismo sem o elogio da máquina, da velocidade, da potência sobre-humana adquirida ao volante ou ao manche — e isso vale para poetas à esquerda e à direita. Por isso, o tom é pleno de otimismo (“Depois de folhear este livro,/ guarde bem na sua cachola:/ são legais todos os ofícios,/ escolha.”).

Poeticamente, o estilo é vibrante, visual, sonoro. Rimas, aliterações, assonâncias, o apelo ao concreto, o diálogo com a informação visual — enfim, a mesma gama de recursos formais do poeta dos versos “adultos” comparece aqui com relativa galhardia. Os poemas são igualmente prazerosos na leitura silente e em voz alta. Fato curioso é que cada profissão que aparece está ali para sobrepujar a anterior, numa espécie de processo de superação socialista. Do marceneiro ao marinheiro soviético, é possível perceber um quê de traço evolutivo entre os ofícios destacados pelo poeta.

O mesmo espírito que gerou seu livro viu o surgimento de outras obras edificantes, que tentavam incutir um novo espírito aos filhos da Revolução

Não é preciso mergulhar o pé na banheira da psicologia mais morninha para detectar, em O que vou ser quando crescer?, aquilo que parece ser um último esforço do poeta a favor de sua plena integração na União Soviética da virada para 1930 (que o poeta não veria, pois iria se suicidar no mês de abril da nova década). Desilusão política, relações mais do que instáveis com os “escritores proletários”, romances malogrados com diversas mulheres. Entoar loas (ainda que dialeticamente) às profissões a serem abraçadas pelos jovens poderia parecer um lenitivo para a dor de cotovelo, tanto socialista quanto amorosa.

Assim como outros autores do seu tempo, Maiakóvski parecia acreditar que as crianças soviéticas precisavam de um norte. O mesmo espírito que gerou o livro viu o surgimento de outras obras edificantes, que tentavam incutir um novo espírito aos filhos da Revolução. É o tempo de Arkadi Gaidar e seu Conto do segredo da guerra — em que um menino mantém um grande segredo e acaba salvando a pátria comunista — ou os poemas de Tio Styopa (publicados em 1936), de Serguei Mikhalkov, nos quais um nobre policial ajudava a inspirar multidões de pequenos socialistas. Uma nova moral para uma fase histórica novinha em folha. 

Especial Infantojuvenil: oferecimento Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Leandro Sarmatz

É editor da Todavia e autor de Uma fome (Record).

Matéria publicada na edição impressa #6 out.2017 em junho de 2018.