Infantojuvenil, Poesia,

Pastifício poético

Em livros de versos para crianças, Fabrício Corsaletti cria um jogo de mão dupla entre seus poemas e suas crônicas

29out2018 | Edição #16 out.2018

Quem acompanha a carreira do poeta e cronista Fabrício Corsaletti sabe de sua veneração por uma vida, digamos, pé no chão, como se apresenta de maneira exemplar na coletânea Perambule (Editora 34), que reúne crônicas escritas entre 2014 e 2017. E é muito forte a conexão entre esse trabalho de cronista regular e o livro Poemas com macarrão, voltado para o público infantil, que acaba de sair.

Em Poemas com macarrão, o cronista andarilho Corsaletti vem falar das comidas prediletas da infância (macarrão feito pela mãe, milho assado na brasa, uma piscina de sorvete), de tomar banho de chuva, viver de chinelo, pequenas mentiras e castigos, felicidades e tristezas singelas, misturando memória e imaginação para levar os leitores a uma atmosfera da infância vivida com a simplicidade que o autor busca também flagrar, como possibilidade e contraste, na vida adulta.

Ao ler os poemas de Corsaletti para o público infantil, revela-se, de certo modo, algo que diz muito sobre o conjunto de sua produção, como uma espécie de alerta que o autor jamais expressa completamente, apenas insinua: o mais importante da vida está naquilo que temos desprezado. Ou ainda: estamos jogando o tempo fora com “urgências” bobas, quando deveríamos nos dedicar a “bobagens” urgentes. E é por isso que, nas crônicas (cheias de poesia) e nos poemas (cheios de crônica), Corsaletti faz nosso olhar, nossa memória, nossa atenção seguirem rumos que, na pressa do cotidiano e na sisudez da vida prática, tristemente desconsideramos.

Tempo

Corsaletti escreve para provocar risos, afetos, lembranças, “viagens” que nos devolvem a um universo de que saímos rápido demais. E é justamente este o ponto: há, na escolha dos temas e no jeito carinhoso de escolher as palavras, uma reivindicação de outra forma de lidar com o tempo, outro ritmo, um desejo de permanência. Por que sair assim tão rápido da infância, da brincadeira, do namoro, do mundo do cuidado, para aceitar a brutalidade do mundo lá fora? 

É por fazer perguntas assim (e nos levar a fazê-las também) que Corsaletti (re)constrói um mundo em que nossa relação livre, subvertida e tantas vezes inusitada com o sentido adulto das coisas é uma afronta à exigência adulta de deixar a infância para trás.

Corsaletti resiste à exigência de deixar a infância: diz que ‘vento é que nem argila’, compara um vulcão a ‘um dragão enterrado’

Corsaletti resiste, Corsaletti viaja figurativamente. E viajar é seu resistir. Então sonha com um parque subterrâneo na praça Ataliba Leonel; diz que “vento é que nem argila” (“ganha a forma que quiser/ vira bicho e vira planta/ o vento e a argila podem/ ser um coqueiro ou uma anta”); compara um vulcão a um “dragão enterrado”, à “panela sem tampa/ esquecida por gigantes” e à “camponesa triste/ quer se mudar pra cidade”; atribui a felicidade de um casal ao fato de que um vê o outro como um pudim, relacionando-se como “madeira com a lixa” e daí à “paz de azulejo e lagartixa”.

No uso das rimas, aliás, Corsaletti encontra um outro campo para suas viagens. Salta, com naturalidade, das saúvas para o suco de uva. Vai do amor ao vereador, da azeitona à japona. Ao falar do chinelo, abre a caixa de rimas e, com elas, das imagens que envolvem Marcelo, vitelo, duelos, castelos, martelo, cutelo, rastelo… Ao seguir os caminhos ampliados por essas palavras que, provavelmente, foram trazidas aos poemas pela exigência da rima, Corsaletti encontra mais uma forma de escapar aos limites “adultos” (insisto nessa palavra, com sua pretensão de racionalidade, oposta ao que costumamos atribuir de irracional à infância) que se impõem à nossa forma de ver o mundo. Nas rimas e imagens de Corsaletti, por exemplo, “cavalo é um bicho esquisito/ de noite dorme na grama/ mas durante o dia come/ a própria cama”.

É preciso também destacar como as ilustrações de Jana Glatt, com traços e cores fortes, se fundem perfeitamente às imagens dos poemas. Muitas vezes, em livros infantis, as ilustrações cumprem uma função redutora, digamos, tornando óbvio aos olhos tudo aquilo que o texto provoca na imaginação. Em Poemas com macarrão, contudo, as ilustrações levam a imaginação ainda mais longe. E é muito bom viajar pelo universo que as artes de Fabrício Corsaletti e Jana Glatt descortinam.

Quem escreveu esse texto

Tarso de Melo

Advogado e poeta, publicou Íntimo Desabrigo (Alpharrabio/Dobradura).

Matéria publicada na edição impressa #16 out.2018 em outubro de 2018.