Poesia,

A digestão de Orfeu

Já consagrado como poeta, Murilo Mendes reuniu em “Poliedro” suas memórias de infância, reflexões sobre a história recente e notas sobre objetos e animais

14nov2018 | Edição #8 dez.17-fev.18

Para Joseph Brodsky, a poesia é como a aviação, e a prosa, como a infantaria. O poeta que troca uma pela outra precisa aprender a combater a pé. Mas a coisa não seria tão simples para o mineiro Murilo Mendes, capaz de aterrissar em nuvem e cair do chão para o céu. “No momento, a técnica da prosa interessa-me mais que a do verso”, declarou o modernista em 1961, quando já tinha muitas horas de voo no brevê. O resultado mais importante dessa mudança de interesse é Poliedro, de 1972, agora primorosamente reeditado por Júlio Castañon Guimarães depois de muito tempo fora de catálogo. 

O autor já era desde a década de 1930 um poeta inclassificável, às vezes muito à força rotulado como “surrealista”. Trocando de técnica, tornou-se impossível de catalogar também como prosador. O título de Poliedro já impede uma decisão rígida. Contrastando com a linearidade prosaica, que tende ao plano, a imagem modela um volume no espaço, além de ostentar várias faces. Não podemos esperar desse sólido um reflexo do mundo, estável e apaziguador. Aproveitando outra tirada de Brodsky, dentro da obra de Murilo, Poliedro é “a continuação da poesia por outros meios”.

Enfim, seria uma “poesia em prosa”. Só que não (como o autor talvez dissesse hoje, se fosse vivo, usando hashtag). Memórias de infância, notas de observação de animais ou de objetos do cotidiano, pílulas de reflexão sobre a história recente, estalos e notas espirituosas — é esse o material arquivado por dentro do Poliedro, em seus diferentes “setores”.

Do alto da girafa

“Pertenço à categoria não muito numerosa dos que se interessam igualmente pelo finito e pelo infinito”, explica-se o autor, em sua “microdefinição”. Escolado por duas guerras mundiais, avisa: “Do alto da girafa convocarei os povos para a realização do congresso mundial da paz”. Só ele, o visionário de sempre, pode livrar os objetos banais da sujeição aos nossos propósitos diários: “Sobre o copo nu Vênus amanhece”. E ainda nos dá notícias menos deprimentes do que as que lemos nas nossas timelines tão fatigadas: “O menino experimental come as nádegas da avó e atira os ossos ao cachorro”. Uma escrita veloz, ágil, cheia de dinamismo e surpresa. 

Aproxima-se da contenção do aforismo, mas sem pretensões à sapiência empoeirada das “máximas” de antigamente. Por isso, a prosa muriliana pertence com exatidão à “poética do fragmento explosivo” que José Guilherme Merquior descobriu na poesia do autor.

O poético aqui não está tanto no artesanato (como ritmo, jogos verbais ou musicalidade): o livro reclama para a prosa a liberdade da poesia

Essa explosão, não sendo linear como uma narrativa simples, e espalhada no espaço através de enlaces às vezes arbitrários, funcionaria à perfeição no contexto atual das redes sociais. A página 21 não necessariamente sucede à vigésima. Os novos leitores de Poliedro terão essa impressão de um verdadeiro “livro de postagens” (para citar o título tão bem achado de um poeta contemporâneo, Carlito Azevedo). O poético aqui não está tanto numa forma do artesanato (como o ritmo, os jogos verbais ou a musicalidade), mas numa estratégia conceitual: o livro reclama para a prosa a liberdade da poesia. Rearranja o mundo, justapõe imagens, impõe seu próprio organismo. Com sua visão singular da lírica moderna, o poeta em prosa declara: “Através do lirismo propendo à geometria”.

É a mesma propensão que hoje o levaria ao reino dos algoritmos internáuticos. Católico experimental e heterodoxo, Murilo explicita nesse livro hipertextual sua visão da poesia como fabricação prévia de roteiros para alcançar o “limiar do paralém”. Reticular e indeterminado, ora em verso, ora em blocos de prosa, essa escrita resiste à lógica linear da ciência moderna, reciclando uma cosmologia de correspondências transcendentais, imaginárias. Por exemplo, a natureza gostaria de oferecer a pérola “diretamente à mulher”, mas depende da “manopla do negociante”. Até um humilde lençol se transfigura: é “uma espécie de toga essencial que nos cobre o corpo durante a operação noturna”.

Nesse plano cosmológico, entende-se melhor por que a prosa, para Murilo, “provém da digestão de Orfeu”. O poeta está digitando o link apocalíptico que nos dirige a um “paralém” que também está além da mera distinção entre prosa e poesia, a linha e o volume, o off-line e a conexão.

Nessa “poliédrica doutrina”, o paradoxal se concilia. A harmonia está na disparidade entre dois cliques, e até a errata pode introduzir novos erros (como acontece com a da edição original, que poderia estar reproduzida na nova, em vez de tantos retratos). O Poliedro, reeditado, revive. E ainda “ressuscita” o magistral ensaio que mereceu de Merquior, publicado antes em francês, em 1974, e agora acrescentado ao final do livro, traduzido por Júlio Castañon.  

Quem escreveu esse texto

Sérgio Alcides

Poeta e crítico literário, é autor de Armadilha para Ana Cristina e outros textos sobre poesia contemporânea (Verso Brasil).

Matéria publicada na edição impressa #8 dez.17-fev.18 em junho de 2018.