Crítica Literária,
A bossa da ‘Formação’
A síntese entre o universal e o particular na crítica de Antonio Candido e na batida de João Gilberto
20mar2023 | Edição #68Por quanto tempo a literatura será concebível — se é que ainda o é — da maneira como dizia Antonio Candido: como um meio “para receber cultura e enriquecer a sensibilidade”? O pressuposto aí é a existência da vida interior, pessoal e intransferível, e do desejo igualmente oceânico (que parte de uma insatisfação definitiva com a própria origem) de conhecer o mundo lá fora e os outros, os diferentes modos de viver e sentir. À experiência da vida de cada um, mais limitada, pode-se juntar a da ficção, viajando por dentro, para se distanciar de si e trocar de pele na imaginação.
É difícil conciliar essa prática da cultura como nutrição subjetiva com a tendência dominante do chamado “entretenimento”. Cada vez mais a relação com o fictício se difunde como um modo de só receber estímulos eletrônicos e enriquecer megaconglomerados financeiros quando não estamos nem trabalhando nem fazendo encomendas on-line.
Mas as contradições também estão na rede, e agora é possível, num clique, pedir uma nova edição da Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Um motoboy precarizado e autoempreendedor entregará na sua portaria o maior monumento da crítica literária do Brasil de tempos atrás. Você poderá abrir o pacote ouvindo João Gilberto girando na vitrola imaginária pelo seu streaming preferido. Será engraçado lembrar que a Formação e Chega de saudade são dois fenômenos de 1959, que se “fenomenam” outra vez em pleno século 21. E estão mais do que nunca disponíveis, remasterizados, envoltos no plástico-bolha das convencionalidades atuais, como contemporâneos da Odisseia, de Chopin e do hip-hop.
Formação da literatura brasileira: momentos decisivos e Iniciação à literatura brasileira, de Antonio Candido
Na hora do unboxing, você talvez olhe com receio inconfessável para o volume de oitocentas páginas, enquanto se desmancha aos poucos o fetiche da mercadoria. Estará iludido que os 35 minutos do lp não levantam um desafio à sua atenção esgarçada só porque não precisa mais virar o lado do disco. Outras janelas de propaganda se abrem à sua volta, em vários gadgets, dando ordens como se fossem carícias, enquanto você constata o abismo temporal logo nas primeiras páginas. Conforme o caso, poderá ocorrer à sua mente uma reflexão inquietante, sobre o fracasso do Ocidente em democratizar de fato o acesso à cultura e à educação de um modo que dissolvesse a impressão (enganosa) de uma voz aristocrática que paira acima da “literatura como sistema” postulada pelo autor.
“É luxo só”
O cantor se esmera nos seus fones de ouvido, no momento decisivo em que a canção e a crítica entram em colapso e você percebe que terá de escolher só uma das duas atrações. A formação de uma literatura nacional permite a você “elaborar a visão das coisas, experimentando as mais altas emoções literárias”. Ou você passa para “Morena boca de ouro” ou continua a leitura de Candido. As emoções da bossa nova também são altas. Não se pode experimentar tudo ao mesmo tempo.
Se você se acha um leitor razoável, gostará de saber que as citações estrangeiras aparecem traduzidas, quando em prosa. Mas será um espanto o que acontece com as de poesia: o critério é deixar no original, sem tradução, os versos castelhanos, italianos e franceses, “mais acessíveis ao leitor médio”. Os latinos e ingleses são traduzidos no rodapé. Você precisa de uma pausa depois disso, para ouvir de novo “Saudade fez um samba”. É verdade: um grande crítico não subestima o público.
‘Formação’ é uma história do público, por ser a ‘história dos brasileiros no seu desejo de ter uma literatura’
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Não por acaso foi justamente Candido quem pensou essa história literária não como mera sucessão de obras superficialmente comentadas, em ordem cronológica, e sim como faria um historiador de verdade — a partir de uma articulação bem mais complexa, um sistema, ligando, no caso, autores, obras e leitores. E você, acostumado a ser tratado pelo sacrossanto mercado como o “Lobo bobo” trata um “chapeuzinho de maiô”, descobre que na Formação sua capacidade de leitura faz parte do objeto estudado.
Os algoritmos se irritam, na raiz dos seus cabelos. Eles, que tanto se esforçam para banalizar seu perfil e mantê-lo sob controle, sabem que o “leitor médio” de 1959 pode ser hoje um perigoso divergente, imprevisível. Ele se via e era visto por Candido como parte de um público, não de uma bolha. E a Formação não deixa de ser uma história do público no Brasil, por ser também uma “história dos brasileiros no seu desejo de ter uma literatura”. Seria, para o autor, uma “literatura empenhada”, como “parte do esforço de construção do país livre”. Talvez atrelada demais à realidade, porque “não há literatura sem fuga ao real”. É belo ver o pensamento crítico avançar assim, menos pelo juízo do que pela análise, o exame das contradições — da maneira que chamavam dialética. Deve ser, na crítica, o correlato da batida de João Gilberto ao violão, aquele não-sei-quê da síncope.
“Venha ouvir o hô-ba-lá-lá”
Candido se propõe a estudar a formação da literatura brasileira como “síntese de tendências universalistas e particularistas”. Dá assim um eixo crítico firme a uma periodização que já existia — por exemplo, na História da literatura brasileira, de Sílvio Romero, publicada pela primeira vez em 1888. Com sua própria bossa nova, quebra os esquemas simplórios ao enfatizar um traço de coerência entre dois “momentos decisivos” a princípio opostos: as tendências neoclássicas da segunda metade do século 18, supostamente universalizantes, e o movimento romântico do 19, impregnado de “cor local”, com seu “instinto de nacionalidade”, no dizer de Machado de Assis.
O livro espalha esse projeto em capítulos mais ou menos independentes, como “estudos de obras” que se rejuntam em torno de um eixo monumental. A questão de fundo já estava posta desde meados do século 18: como fazer a tradição do Ocidente aterrissar no Novo Mundo, como quem funda uma grande capital moderna num planalto central perdido no cerrado americano. Como emancipá-la ali, naquela localidade distante das metrópoles já conhecidas, mas onde ela possa criar raízes e emparelhar-se com as outras.
“Não são estas as venturosas praias da Arcádia”, lamentava Cláudio Manuel da Costa, em 1768, vivendo nas proximidades das áreas soterradas 250 anos depois pelas barragens multinacionais da mineração em Mariana e Brumadinho. Ao mesmo tempo, o poeta se esforçava para introduzir o arcadismo europeu “nos sertões da Capitania de Minas Gerais”. Era esta a mais importante inconfidência — movida por um anseio subversivo análogo ao de Mário de Andrade, quando falava na necessidade de integrar a cultura brasileira no “concerto das nações”. E foi no contexto do modernismo paulista que se formou o próprio Candido, na década de 30.
Em 1959, duas altas expectativas se impunham, complementares: por um lado, a de uma literatura emancipada frente ao modelo das potências ex-colonizadoras, mas integrada ao patrimônio literário ocidental; por outro, de um público cultivado, exigente e autoexigente. São pressupostos compatíveis com um ambiente democrático, laico, moderno, como o Brasil pretendia ser naquele final de “anos dourados”, às vésperas de mais uma ditadura. Mas ainda marcam bem uma condição pós-colonial, em que o empenho da literatura é “formar-se” não só como um vasto território da imaginação, mas também como “instrumento de descoberta e interpretação” do país e da sociedade. É por isso que a Formação se afirma ao lado de outras obras-primas dos “intérpretes do Brasil”, como Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, e Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre.
“Eu pra você, você pra mim”
A Formação, a bossa nova, o traço do arquiteto — são realizações ligadas a grandes projetos modernizadores, que iam na contramão de vetustas tradições autoritárias advindas da herança colonial. Poucos anos antes, o presidente eleito quase não conseguira tomar posse, acusado de ser “comunista”, “corrupto” etc., com a mesma receita de sempre. Quanto a isso, entre o tempo de Kubitschek e o de Juscelino Filho só mudou o nome da mentira, que virou fake news. Aquela condição contra a qual a literatura brasileira estaria empenhada tornou a se inflamar várias vezes, inclusive na história recentíssima do país.
Nos anos 90, já era claro que uma “literatura nacional” podia ser opressiva em uma sociedade tão desigual
Enquanto se decide entre Candido ou João, seria importante o “leitor médio” de hoje saber que a Formação foi pensada e escrita dentro das esperanças democráticas reavivadas com o fim do Estado Novo, em 1945. Não foi um projeto acadêmico ligado à ainda jovem Universidade de São Paulo, onde o autor estudara e onde lecionaria por vários anos. A iniciativa partiu de uma encomenda da editora paulista Martins. A formação da Formação demorou mais de dez anos, durante os quais o crítico já bem conhecido viu se consolidar também sua carreira acadêmica, primeiro na usp e depois na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis (hoje pertencente à Universidade Estadual Paulista).
Mas essa transição — da esfera do público para a academia — marcou mais os estudos universitários do que as páginas da Formação. A obra mantém a cada capítulo seu compromisso com o público cultivado, não especializado, a quem a crítica se dirige de verdade, e que fecharia na quarta página qualquer livro que lhe tentasse impor um tom didático, ex cathedra. Vem principalmente daí, e não das relações pessoais do autor com Mário e Oswald de Andrade, a sensação de que a história literária narrada em Candido dá continuidade a uma perspectiva do modernismo paulista, que ele aprofunda e amadurece. O que não impediu o livro de ingressar na bibliografia obrigatória das faculdades de Letras, desde a publicação.
Não é tranquila a relação entre a universidade e o público, e nesse quesito a Formação tem um papel exemplar. Escrita em alto português do Brasil, com grandeza e espirituosidade, é exigente sem ser maçante, acessível sem facilitações e, principalmente, avessa ao jargão acadêmico que para qualquer leitor é puro repelente. Não espanta que a primeira reação negativa forte ao livro tenha partido de um crítico que, embora fosse atuante na imprensa, se preocupava muito mais com a autoridade comprovada em títulos.
“Brigas nunca mais”
Afrânio Coutinho escrevia sua coluna no Diário de Notícias, do Rio de Janeiro, com a aura de um recém-chegado da Universidade Columbia. Para ele, que viria a ser um dos maiores pilares da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ufrj), a Formação era “uma obra que surgiu atrasada”. Citando os mestres do New Criticism americano, ele rejeitava o que lhe parecia uma orientação “sociológica”, quando o conceito de literatura correto deveria ser “estético”. E ainda tentou demolir a armação historiográfica feita pelo colega ao datar de meados do século 18 o começo da formação literária nacional. Para Coutinho, partidário de um nacionalismo crítico exacerbado, a literatura brasileira começou muito antes, “no instante em que o primeiro homem europeu aqui pôs o pé”, e assim fez surgir o “homem brasileiro”.
Nesse ponto, a crítica de Coutinho se parece com a de Haroldo de Campos, exposta só nos anos 80. Ao privilegiar a ideia de um sistema que articule autores, obras e público, Candido exclui da Formação o que chama de “manifestações literárias” anteriores à virada neoclássica que se notou na colônia só depois de 1750. Ficava fora (“sequestrado”, diria Haroldo) o “barroco” e, com ele, a obra notável de Gregório de Matos, cuja inventividade o crítico e poeta vanguardista via na linhagem do concretismo. Para Haroldo e Coutinho, ainda que por motivos diferentes, a origem da literatura brasileira seria necessariamente barroca.
Candido foi excepcional em 1959 pelos mesmos motivos que o levaram a ajustar sua própria visão em 1997
Ainda há quem pretenda tomar partido nessas polêmicas tão ociosas quanto um velho disco arranhado de João Gilberto. Que sentido teriam elas hoje, quando se questiona a própria existência de um estilo único chamado “barroco”? Qualquer historiador iniciante desprezaria com um sorriso a ideia de que o “homem brasileiro” — bolsonarista ou não — tenha a idade da Carta de Caminha. Mesmo a Formação, com toda a beleza de sua arquitetura moderna, continua a ser uma obra do seu tempo. A eterna discussão entre seus detratores e seus defensores só persiste como um embate universitário, por vezes bairrista, espécie de mania daquilo que Coutinho chamou de scholarship literário — como se alguma coisa “literária” pudesse ser ao mesmo tempo escolástica.
“Desafinado”
Diante da expressão “homem brasileiro”, seja em Coutinho, seja em Candido, o leitor médio atual pensa em Yanomamis esfaimados, navios negreiros, mulheres de punho cerrado, no orgulho lgbtqia+ e na perseguição brasileira a pessoas trans, em seus momentos cotidianamente decisivos e horríveis. Ele sabe que a noção de “literatura brasileira” é hoje um campo disputado por uma diversidade de perspectivas, causas e empenhos que nem o maior crítico dos anos 50 poderia antever. E assiste com inquietação à troca da pauta identitária nacional por outras, seguindo um paradigma análogo, que tende a reduzir o público — tão atravessado por diferenças e conflitos, e por isso indispensável à democracia — a uma instância tão coesa e autoencerrada quanto uma suposta identidade ou bolha algorítmica.
Entretanto, quem encomendar junto com a Formação também a Iniciação à literatura brasileira, que o mesmo autor publicou bem depois, em 1997, verá que o próprio Candido tomou distância de sua obra capital. Ao final do século passado já era evidente para ele que o ideal de uma “literatura nacional” podia ser simplesmente opressivo para enorme parte de uma sociedade tão desigual e excludente quanto a nossa. “A história da literatura brasileira”, diz ele logo no início desse breve panorama, “é em grande parte a história de uma imposição cultural”. Seria um “instrumento colonizador”, por vezes a serviço de classes dominantes locais, o qual “desqualificou e proscreveu possíveis fermentos locais de divergência, como os idiomas, crenças e costumes dos povos indígenas, e depois os dos escravos africanos”.
O que detratores e apologistas não sabem, nem sequer pressentem, é que fora dos muros universitários o tempo passa e a sociedade apresenta demandas sempre novas. O Candido de 1959 foi um crítico excepcional exatamente pelos mesmos motivos que o levaram em 1997 a ajustar sua própria visão. Ao falar de uma “literatura empenhada”, ele nunca desprezou a necessidade de um empenho específico também daquele que a história questiona. Entre um livro e outro, permaneceu atento praticante do que chamou de “crítica viva” — aquela que “empenha a personalidade do crítico e intervém na sensibilidade do leitor”. É com essa bossa que a Formação retorna às livrarias, on-line ou off-line, mas sempre em desafio a um público que nunca deixou de reconhecer e cultivar.
Matéria publicada na edição impressa #68 em março de 2023.
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