Meio ambiente,
A cicatriz da terra
Testemunhos de ‘Diários yanomami’ expõem como a maquinaria do garimpo afeta todas as relações dos indígenas entre si e com o território
01set2024 • Atualizado em: 30ago2024 | Edição #85Ainda guardamos na memória as fotos das crianças yanomami adoecidas como consequência da invasão dos garimpeiros em seu território. Não esquecemos das imagens da floresta aberta em crateras, ou dos rios correndo com água esbranquiçada. Nas notícias que dominaram as redes em janeiro de 2023, lemos que 3,4% da Terra Indígena Yanomami foi tomada pela exploração ilegal de ouro e cassiterita, resultando em 61% dos cursos d’água contaminados por resíduos tóxicos. Deparamo-nos com a estimativa de 20 mil garimpeiros em um território que abriga 30 mil indígenas.
Mais de um ano depois, a narrativa sobre o cenário brutal que se desenrola no território yanomami parece se condensar em uma série de imagens emblemáticas, manchetes mais ou menos fixas sobre uma violência complexa. Diários yanomami: testemunhos da destruição da floresta faz exatamente o inverso disso: abre a caixa-preta do garimpo, expondo com detalhes o interior da maquinaria que afeta praticamente todas as relações dos yanomami entre si e com o território.
Os testemunhos que dão origem ao livro são o resultado de um projeto de pesquisa-ação promovido pela associação indígena Hutukara, em parceria com o Instituto Socioambiental. Entre 2021 e 2022, anos em que a invasão foi mais contundente, cinco pesquisadores indígenas se dedicaram a conversar com seus corresidentes com o intuito de recolher relatos sobre os impactos da extração ilegal no território. O resultado são as cinco partes do livro, cada uma com diferentes escolhas metodológicas: os diários de Mozarildo Yanomami e Josimar Palimitheli oferecem um panorama da situação a partir de suas viagens a aldeias próximas às áreas de mineração; as anotações de Marcio Hesina apresentam detalhes sobre o adoecimento das crianças e o sofrimento de seus pais; os depoimentos reunidos por Darysa Yanomami veiculam as perspectivas das mulheres; as entrevistas de Alfredo Himotona trazem diversos interlocutores, inclusive jovens envolvidos em atividades garimpeiras.
As vozes são múltiplas e, com diferentes tonalidades, replicam a sofisticação estilística yanomami já conhecida pelas palavras de Davi Kopenawa. Como faz o xamã, também chamam atenção para o difícil tema da voracidade dos não indígenas. Muito mais abrangente do que a máquina minerária em si, muito mais tátil do que seu modo de operação, encontramos no livro uma descrição da lógica que é seu motor.
“Vocês nos assustam devorando a terra”, diz uma das interlocutoras de Darysa. Lemos sobre o apetite do garimpo através dos efeitos que ele produz nos corpos e no território — são esses efeitos, tão vastos, íntimos e brutais, que constroem uma denúncia que não pode ser lida só como panfletária. Ela é um protesto cosmopolítico.
As vozes são múltiplas e replicam a sofisticação yanomami conhecida pelas palavras de Davi Kopenawa
“A terra está doente, seu âmago está enfermo”, diz um interlocutor de Marcio Hesina, ao explicar por que as plantas não nascem mais nas roças, por que as crianças estão fracas e morrendo. “Contaminação” é uma noção que vem no encalço de “mercúrio”, quando o assunto são as atividades extrativas ilegais. Mas um dos efeitos de chegar à última página dos Diários yanomami é alcançar uma nova formulação dessa ideia.
“Os brancos chamam contaminação de mercúrio. Nós chamamos de xawara”. O termo aqui não designa apenas as sequelas oriundas do contato com o poluente, mas um adoecimento mais geral que se espalha por todos os seres da floresta. Xawara é a palavra para epidemia, mas ela abrange também as razões dos jovens estarem sendo cooptados pelo garimpo ou das mulheres estarem sendo violentadas. Ela fala também dos animais que se afastam das comunidades e dos espíritos xapiri pë que perdem sua morada no interior das serras. A floresta não é separada dos seres que a habitam, o mundo concreto não é separado da cosmologia.
Trapaça
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O livro evoca mais uma vez aquilo que há anos Kopenawa chamou de “feitiço da mercadoria”. Aqui, porém, somos apresentados a um conceito correlato, e igualmente ardiloso: o da “trapaça”. Inúmeras vezes, os relatos abordam as manobras utilizadas pelos garimpeiros para se aproximar das comunidades vizinhas a regiões auríferas, uma fórmula que gradualmente se espalha pelo território. “Tuxaua, nós somos amigos”, os invasores dizem. “Nós queremos ajudar você. Me diz o que você quer. Eu compro tudo”, conta Josimar.
As técnicas não variam muito. Aproveitando-se que poucos Yanomami são fluentes em português e, sobretudo, de uma concepção de política que não é hierárquica, os garimpeiros praticamente fabricam figuras de chefia. “Digam ao líder daí”, eles sopram ao vento. Quem se aproxima é um jovem. Pouco experiente e interessado no mundo da mercadoria, ele receberá as promessas de uma porcentagem da extração — o “dinheirinho” — ou, mais comumente, de mercadorias. Eles “nos pagam pelo uso da floresta com espingarda, cartuchos, celulares, placas solares, baterias”, diz um rapaz que colabora com os mineradores.
“Pagar pelo uso” descreve bem a operação. A expressão fala não só das promessas dos garimpeiros, mas de toda a engenharia conceitual da atividade. É de se notar que eles pagam pela floresta yanomami com recursos da floresta yanomami. A reiteração dá vertigem, principalmente porque a extração implica na devastação — é como compensar com um milho a destruição do milharal. Mesmo assim, a frase parece ter se tornado, no jargão garimpeiro, o mote que legitima a empresa. “Eu compro tudo” não é só uma promessa de bens. Toda a floresta passa a ser comprável também. A nova onda da mineração não opera mais em crateras distribuídas em determinados locais da floresta. Agora, contam os yanomami, “eles devastam completamente”.
É tão descarado que os garimpeiros chegam a usar a pista de pouso do posto de saúde para acessar o território de uma comunidade. Quando há vestígios de minérios ali, invadem roças, deixando famílias sem base alimentar. Mesmo que os animais estejam se distanciando cada vez mais, por causa do ronco dos motores, o acesso a rotas tradicionais de caça é proibido.
Quando os garimpeiros se estabelecem em uma região, eles montam barracas, fazem galpões, constroem bares, criam seu entreposto à moda das cidades: servem refeições a R$ 150, chegam a cobrar R$ 50 por cinco minutos de internet. Sobem e descem os rios dia e noite, passando diante das comunidades com barcos hipervelozes. Abrem pista de voo, criam estradas, infestam os rios com balsas, chegando a cobrar pedágio — não apenas de filiados de facções diferentes, mas dos próprios indígenas.
Venenosos
Um problema evocado particularmente são as múltiplas tecnologias usadas pelos garimpeiros para se aproximar sexualmente das mulheres indígenas. Eles aliciam pais ou irmãos, convencendo-os a trazer parentes em troca de cachaça. Dão bebida às próprias moças, aproveitando-se delas quando desmaiam. Fazem gestos à distância para qualquer mulher que atravessa seu caminho, indicando que querem ter relações sexuais. “Agora meu medo é permanente”, diz uma das interlocutoras de Darysa.
“Os garimpeiros já devastaram nossa Terra Yanomami. Por que eles continuam a mexer com nossas mulheres?”, pergunta-se Mozarildo. A contiguidade dessas duas afirmações aponta para uma correspondência importante entre as duas formas de exploração. O corpo da terra e o corpo das mulheres aparecem igualmente, na percepção garimpeira, como contendo recursos a serem extraídos. “Seus genitais são venenosos”, repetem as indígenas, evocando a epidemia de doenças sexuais que se instalou com a presença dos invasores.
Venenoso é, de certa forma, todo o funcionamento. O garimpo parece operar sempre pela mesma tecnologia dual: retira de um lugar um recurso e devolve, como contrapartida, um “veneno”. Os indígenas se queixam repetidamente da sujeira ou do lixo resultante da presença dos garimpeiros, jogado nos rios ou nas matas. Falam do mercúrio que infecta a água, e dali a cadeia que depende dela. Abordam os efeitos do desvio dos rios, a falta de água potável, a floresta infestada por carapanãs com malária, as doenças de pele, ouvido, pulmão, intestino. Lastimam o estado dos peixes, cegos pela toxina, que agora são incapazes de fisgar a linha de pesca. Falam da fome.
Quanto maior o risco de esse povo desaparecer, mais a sua imagem se projeta sobre a cultura contemporânea
O próprio dinheiro é uma trapaça. “Eles querem pagar a entrada na floresta, mas, depois de um certo tempo, eles se tornam sovinas”, explica uma mulher. Mesmo os jovens que coadunam com os garimpeiros, recebendo deles uma porcentagem, sabem do engano contido nos bens dos brancos. Tão logo entra uma soma, ela desaparece. “O dinheiro volta para Boa Vista”, diz um dos jovens a Marcio, “não dura nem duas semanas”.
O que permanece, ao contrário, é o território. Mas o que acontecerá com ele se a máquina extrativa seguir operando? “Envelheceram a floresta, a terra amoleceu”, diz Josimar sobre os lugares por onde o garimpo passou.
Rastro
Atendendo a um pedido dos próprios indígenas, Diários yanomami é bilíngue, em português e yanomami. Se o objetivo final do projeto parece ser sensibilizar os não indígenas para a causa, sobretudo as lideranças com poder de decretar a desintrusão, seu intuito também é alcançar os jovens seduzidos pelo mundo não indígena.
“Sou filha daquela gente que tapou os buracos deixados pelos garimpeiros”, diz um dos depoimentos registrados por Darysa. Os jovens, porém, não têm lembranças da devastação feita pela mineração das décadas de 80 e 90. Eles ignoram violências como o massacre de Haximu, de 1993, quando garimpeiros invadiram uma aldeia e mataram dezesseis yanomami. O território é vasto, as comunidades são dispersas e nem todas se frequentam. Os efeitos que o garimpo produz na população vizinha aos locais de extração nem sempre são conhecidos pelos indígenas de outras regiões.
O corpo das mulheres aparece, na percepção garimpeira, como recurso a ser extraído
Mas a escolha editorial faz mais do que ampliar a circulação das informações. Oferecendo o encontro com um mundo irreconhecível para a maioria dos leitores, o livro confere materialidade ao idioma yanomami. Os hectares, as porcentagens, as cifras de mortalidade que lemos nas notícias são dados voláteis. A mensagem yanomami, materializada em sua língua no papel e traduzida na página contígua, impõe que a realidade que eles vivem seja percebida como concreta, que o sofrimento não seja abstrato.
“O rastro dos garimpeiros” é como os yanomami se referem às marcas deixadas pelos invasores em sua terra e em suas vidas. Como lembram os organizadores Corrado Dalmônego, Estêvão Senra e Alcida Ramos, a palavra para rastro é a mesma para cicatriz em uma das variantes da língua yanomami. Os garimpeiros seguem deixando suas marcas, a atividade não parou completamente desde que, em janeiro de 2023, foi declarado estado de emergência de saúde pública. Ainda hoje estimam-se 8 mil não indígenas no local. Mas seus impactos não se fazem apenas enquanto eles estão lá. Mesmo depois de efetivada a retirada, a cicatriz permanecerá.
Xawara, como qualquer outra epidemia, não acaba simplesmente. Seus vestígios permanecem nos corpos, nas memórias e na terra.
Matéria publicada na edição impressa #85 em setembro de 2024. Com o título “A cicatriz da terra”
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