Literatura brasileira, Meio ambiente,

Escrita sobre demolição

Desastres reais em Salvador e Maceió inspiram coletâneas de contos que ajudam a produzir novas memórias sobre as tragédias

01set2024 • Atualizado em: 03set2024 | Edição #85
Recorte do jornal A Tarde mostra a encosta que desabou sobre motel em Salvador, em 1989 (Divulgação)

Enquanto a indústria do cinema produz com cada vez mais frequência um novo filme sobre a crise climática, pensadores como Timothy Morton desdobram suas ideias sobre a urgência de um pensamento ecológico, alertando que não devemos restringir a noção de ecologia à natureza e ao ativismo ambiental. Muito menos achar que aquecimento global, uma pauta necessária, deve concentrar toda nossa energia quando imaginamos o futuro. O buraco é mais embaixo.

O pensamento ecológico, conceito que aliás titula um dos seus livros publicados no Brasil pela Quina Editora, ultrapassa essas noções. Não à toa, o professor de literatura inglesa na Universidade Rice, toma como exemplo o filme Wall-E (2008) para embasar seu argumento. O robozinho compactador de lixo do sucesso da Pixar parece procurar obcecadamente algum vestígio humano entre as pilhas de dejetos. Para Morton, o filme apresenta bem o estado em que estamos vivendo.

Quando Porto Alegre alagou nas chuvas de abril e maio deste ano, não foram poucas as fontes que realçaram o que já supostamente havia sido previsto há pelo menos cinquenta anos. E conforme o tempo passa, a inundação mais se aproxima de uma memória estatística, enquanto outras tragédias anunciadas seguem seu curso. A tragédia no Sul atualizou traumas vividos também por muitas cidades brasileiras e que não se tratam de fenômenos naturais, mas de má administração pública associada à negligência de empresas ou grupos econômicos que ignoram riscos à população.

Rodrigues utiliza o desastre como clímax, fazendo do livro um conto sobre as últimas horas do motel

Alguns desses casos saltaram da realidade imediata para a literatura. É o caso de Motel Mustang, do autor baiano Marcus Vinícius Rodrigues. A ficção se baseia na destruição de um motel na capital baiana em 1989, quando numa madrugada de intensas chuvas trinta toneladas de terra desabaram sobre o prédio, matando nove pessoas, entre funcionários, donos e clientes. Naquele mesmo ano, foram registradas 45 mortes em decorrência das fortes chuvas em Salvador.

Quem vive na capital baiana, sabe que as chuvas de maio de 1989 não foram exceção. Este é um dos meses mais chuvosos, quando os moradores de localidades próximas às encostas precisam recorrer a sirenes quando os índices pluviométricos são preocupantes. O sinal sonoro é o indicativo de que é preciso desocupar a área e, ano após ano, elas voltam a ser disparadas em lugar de ações mais eficazes de segurança para a população.

No caso do Motel Mustang, o desabamento se tornou uma dessas histórias recontadas de boca em boca ao longo do tempo, dada a localização do desastre e também a peculiaridade do estabelecimento, bem captada por Rodrigues. Em vez do puro relato do que aconteceu — o que já foi feito pelos jornais da cidade —, o que o leitor encontrará é a reconstituição das vidas perdidas por meio de personagens ilustrativos dos frequentadores do motel.

Os encontros amorosos e sexuais ocupam o centro da cena e o desabamento aparece de modo mais enfático quando é habilmente convocado pelo autor, porque afinal a narrativa expira os momentos finais dos personagens e parece desejo do autor mostrar exatamente a vida de pessoas comuns. Nesse sentido, prorrogando o anúncio do desabamento, os textos lidos em conjunto utilizam a tragédia como clímax, fazendo do livro todo uma espécie de conto sobre as últimas horas do motel.

Tremor

Uma tragédia que também poderia ser impedida assenta os contos de A fenda da lagoa, estreia literária da alagoana Lili Buarque. Em março de 2018, moradores de Pinheiro, tradicional bairro de Maceió, e pelo menos outros três bairros, sentiram um tremor de terra. Rachaduras em imóveis, fendas nas ruas, afundamento de solo e o resultado de uma análise realizada pelo Serviço Geológico do Brasil envolvendo 52 pesquisadores mostraram que a causa seria a extração mineral de sal-gema pela empresa petroquímica Braskem. O fenômeno foi classificado como “subsidência”, um “rebaixamento da superfície do terreno devido às alterações ocorridas no suporte subterrâneo”.

Bairro fantasma do Bomparto que fica nas proximidades da mina n°18 da mineradora Baskrem na lagoa de Mundaú. (Joédson Alves/Agência Brasil)

A continuação de parte dessa história, uma vez que as vidas dos moradores viraram de pernas para o ar, ficou conhecida nacionalmente; a comunidade precisou deixar suas casas, comércios, trabalhos, meios de sobrevivência, empacotou memórias, enquanto a empresa embalou medidas paliativas para a reparação de um dano não precificado. Até hoje os moradores tentam reorganizar a vida por motivos que poderiam ser evitados não fosse o descaso da petroquímica.

Apesar da diferença de anos que separa as duas tragédias, em comum, o gesto de autorias que não querem deixar morrer uma história que deve ser conhecida e, por outro lado, a produção de uma nova fonte de memória que se faz a partir das histórias reunidas pelos escritores. Nesse ponto, a literatura tem mais tentáculos do que a história oficial, por ser capaz de manusear dados que não são objetivos, porém inegociáveis para a transmissão da memória ou de denúncia de crimes escancarados como esses. Motel Mustang e A fenda da lagoa não se limitam aos registros factuais e vão ao cerne dos crimes e seus personagens, possibilitando que vejamos os indivíduos vítimas das tragédias com todos os recortes sociais que permitiram que estivessem no local exato do horror.

A forma do trauma

Não espere histórias sobre luto quando os abrir, embora luto seja um substantivo que alicerça as duas coletâneas. Em Motel Mustang, sem esforço, o leitor ainda acha graça, solta umas risadas, para se emocionar a seguir. É que antes da dor tem a humanidade dos tipos que circulam nos textos curtos. Na primeira parte do livro, que antecede o desabamento, três dos contos se dedicam a diferentes perfis de clientes; o jovem virgem que pega um carro emprestado do patrão de um amigo para levar a namorada ao motel, a namorada ciumenta do militar que encontra na corrida um jeito de ser melhor aceito no trabalho, e o casal de homens que enfrenta uma situação inusitada no motel, um zíper emperrado.

Os trabalhadores do motel também aparecem, numa etapa de transição, ou seja, antecedendo o desabamento, nos permitindo conhecer personagens invisíveis da capital baiana. Eles instauram o começo da tensão no ato da leitura. E porque motéis são estabelecimentos para encontros amorosos de todo tipo e sexo é assunto menos normalizado do que se pensa no país do Carnaval, não chega a surpreender a invisibilidade desses trabalhadores junto a outros que, sabemos, são sub-representados na literatura (garis, porteiros, motoristas, recepcionistas, camareiras).

Os capítulos nos permitem conhecer pessoas que trabalham por sobrevivência numa capital com um dos maiores índices de desemprego do país, segundo dados do ibge, e que muitas vezes se submetem às exigências dos patrões em nome de uma carteira assinada. Uma das personagens mais lúcidas em meio à tragédia, Luciene vive o conflito entre trabalhar no motel e ser uma mulher cristã e religiosa. Outro personagem, o garçom, que queria casar em breve, não teve peito para largar mão do trabalho na noite da tragédia. “Sem emprego eu não posso casar e a gente já esperou tanto”, diz, resignado, para uma das poucas colegas que sobrevive na narrativa.

As histórias possibilitam que vejamos os indivíduos vítimas das tragédias com todos os recortes sociais

Ao contrário dele, outro personagem que reclamou das condições de trabalho ganhou o desemprego em lugar da morte. “Chegou aqui, reclamou e foi embora. Parece que demitiram. Não queria trabalhar nessa chuva… agora que não vai mesmo”, diz a caixa sobre o colega “baixinho”. Ao não dar nome a maior parte dos personagens, Rodrigues acentua a condição de “mais um” dos trabalhadores e convoca a pensar que a história poderia ser a de qualquer outra pessoa.

O autor apresenta a cidade de Salvador distante das gastas imagens turísticas e com uma pulsão de vida que remete por vezes a personagens de Jorge Amado. Em “A maciez da vida”, um grupo de meninos que lembra os capitães da areia de Amado tenta encontrar algo de valor entre os escombros para levar para casa. A euforia está na possibilidade de achar qualquer coisa em estado de uso, como se deparassem com um tesouro no meio de lama e terra, como uma toalha ainda limpa dentro de um saco plástico.

Dinho espantou os outros meninos que já avançavam para a toalha. Estavam nos fundos do motel em uma área em que os bombeiros ainda não estavam trabalhando. Tinham chegado bem cedo, assim que amanheceu e souberam do desabamento. Queriam ver. Todo mundo queria ver. Eram meninos pequenos, o mais velho tinha treze anos e ainda era magro e baixo.

Nesse trabalho de arqueologia, tal como faz o robô de Wall-E, os meninos personalizam o drama e transferem para o leitor o papel de imaginar as narrativas que antecedem os objetos — quais vidas levavam as vítimas sob os escombros?

Já as crônicas em primeira pessoa de Lili Buarque emprestam a voz narrativa para uma coletividade também impactada por uma tragédia. Um “eu” que pode falar por outros “eus” também embasbacados por estar envolvidos em tamanho desacerto. “Nunca sequer imaginei que minha cidade, do tamanho que tem dentro do nosso gigantesco país, pudesse estar envolvida em qualquer ‘maior coisa do mundo’. Mas aqui estamos. Ainda em andamento”, diz a autora no “Prelúdio”. “Em andamento”, aliás, resume um estado atual, ainda que as notícias sobre o incidente tenham se tornado rarefeitas.

A padaria do pai, um dos entrevistados do documentário A gente foi feliz aqui (2021), sobre a tragédia em Maceió, aparece em diferentes crônicas e é representativa de dois grupos prejudicados: os mais antigos moradores, que tiveram de deixar seus imóveis de décadas, e aqueles que fizeram uma trajetória também de trabalho na região, passada de pai para filho, como os Buarque. Em “Trinta pães”, outras identificações aparecem para o leitor que conhece bairros menores. Por estar há muito tempo no bairro, a padaria se torna um ponto de referência e lugar onde proprietário, funcionários e clientes criam certa intimidade. Sem romantizar, Buarque traz ainda outras lembranças, como quando o comércio da família foi alvo de assaltos e, em tom humorado, recupera gafes em meio ao cotidiano atribulado de trabalho, como quando o avô pediu para rebocar um carro em frente à padaria, sem perceber que era de uma cliente.

A fenda da lagoa concentra-se nos relatos pessoais de Buarque, fazendo do Pinheiro uma presença também onírica, porque a memória sempre deixa brechas para o inexato, ainda que o local seja o fio condutor de tudo quanto é narrado. Não fosse a fenda na lagoa Mundaú, o bairro seguiria seu transcurso normal e guardaria uma parte importante da história de Maceió. O livro de Buarque tem como maior mérito oferecer aos leitores, sobretudo aqueles que não estão na cidade e não conseguem dimensionar o tamanho do estrago, narrativas sobre um crime que não pode ser esquecido e repetido.

Passar no Pinheiro hoje causa uma dor profunda. E nem precisa ter vivido por ali para sentir essa agonia. Uma cena de filme de guerra. Ruas, praças, terrenos, comércios, casas e prédios vazios. Ninguém além de animais abandonados e seguranças circulando em motos habita mais aquela região.

Além das fraturas

Uma das ideias centrais do pensamento do martinicano Malcom Ferdinand, que teve sua obra Uma ecologia decolonial publicada em 2022 no Brasil, é de que populações vulneráveis não participam das instâncias de poder que discutem questões de meio ambiente e por isso são alvos preferenciais de um sistema que já nasce tendo a destruição como estratégia — e não consequência.

A partir disso, fica fácil perguntar por que as tragédias que temos visto em áreas urbanas acontecem onde acontecem. O caso Pinheiro/Braskem demonstra que não há constrangimento da petroquímica em atuar na região, porque ali não estaria mexendo com grupos sociais poderosos. No caso de Salvador, também não parece necessário se preocupar com as condições de construção de um motel de periferia, ainda que a própria topografia da cidade anuncie seus riscos. Afinal, quem serão seus frequentadores e funcionários?

Parece pouco ou quase nada o que a literatura pode fazer diante disso, mas produzir outras fontes de memória é fundamental para o enfrentamento que precisa ser feito. Afinal, como nos diz Morton a respeito do pensamento ecológico, “tem a ver com amor, perda, desespero e compaixão. Tem a ver com depressão e psicose. Com o capitalismo e com o que pode existir depois do capitalismo”.

Quem escreveu esse texto

Edma de Góis

É jornalista, doutora em literatura (UnB) e tem pós-doutorado em literatura e cultura e em estudo de linguagens (UFBA/UNEB).

Matéria publicada na edição impressa #85 em setembro de 2024. Com o título “Escrita sobre demolição”

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