Divulgação Científica, Medicina,
A morte como ela é
Médico-legista especializado em ferimentos por balas derruba mitos criados por Hollywood e sustenta que Van Gogh não se suicidou
20nov2018 | Edição #12 jun.2018O médico-legista Vincent Di Maio nos convida a entender a importância de sua especialidade para investigar mortes não esclarecidas, que muitas vezes transcendem questões familiares por incorporarem dilemas de uma era. Di Maio faz necropsias e é reconhecido por uma especialidade incomum: ferimentos por balas. É chamado a analisar crimes de repercussão nacional e internacional, e parece se orgulhar disso. Sua contribuição para a solução dessas mortes o estimulou a escrever este livro, um compilado de histórias cativantes misturado com a biografia de sua família.
Essa é uma primeira impressão, já que a motivação real do patologista americano pode ser compreendida nos poucos momentos em que ele se mostra vulnerável. E não é quando ele descreve um bebê morto, como poderíamos imaginar, ou quando relata a morte dos pais. Mas sim quando escancara os baixíssimos números de médicos patologistas presentes nos Estados Unidos, que sofrem com uma percepção negativa de seu trabalho. “Há apenas cerca de quinhentos patologistas forenses licenciados pelo conselho em atividade nos EUA — mais ou menos o mesmo número que vinte anos atrás. O problema é que precisamos de até três vezes mais profissionais para fazer frente à crescente sucessão de mortes inexplicadas.”
O livro pode ser um apelo para enaltecer uma área pouco profissionalizada, desabonada e só valorizada em filmes e seriados de TV. Di Maio esmiúça esse lado pouco glamoroso do trabalho, a vida real.
Ele contou com a ajuda de um escritor de ficção especializado em crimes, Ron Franscell, contribuindo para o mistério envolvente de cada história. Foi uma escolha acertada. A narrativa torna a leitura voraz e instigante.
É comum Di Maio criticar a cobertura midiática, como no caso de um homem negro, desarmado, que caminhava por um bairro branco e foi seguido por um homem branco que fazia vigilância comunitária. O encontro acabou na morte do homem negro gerando um debate acirrado nos EUA. “Não demorou muito para que os verdadeiros Trayvon Martin e George Zimmerman fossem engolidos pelo abismo retórico cavado pela mídia para polemizar sobre temas como racismo, porte de armas, perfis criminais, direitos humanos e vigilância comunitária.”
Apesar da pressão, Di Maio testemunhou que o homem branco, que estava armado, agiu em legítima defesa. “O que eu sei é vital; como eu me sinto é irrelevante. Como patologista forense tenho um compromisso com a verdade. Presume-se que eu seja imparcial e diga a verdade. Fatos por si só não têm qualidades morais; somos nós que atribuímos moralidades a eles.”
A enfermeira que matava bebês
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Em um dos capítulos ele critica a cultura hospitalar. É um caso horroroso de uma enfermeira que matava bebês. O trabalho de Di Maio foi fundamental para identificar a causa da morte — era uma substância praticamente indetectável no corpo, a Succinilcolina, que paralisa os músculos, levando a criança ao sufocamento. A causa da morte acabava mascarada como uma síndrome da morte súbita infantil. Quarenta e dois bebês morreram no turno dessa enfermeira. Quando ela trabalhou na UTI infantil, 120 crianças morreram. O hospital não contribuiu para a investigação — ao contrário, atrapalhou bastante, com receio de problemas de imagem.
Ele chama de “vilã” essa “cultura hospitalar que prefere se abster a encarar a verdade”. Essa enfermeira poderia ser libertada após cumprir trinta anos sem “se meter em encrenca”. Recentemente, após a publicação do livro, ela confessou ter matado todos esses bebês e atribuiu a culpa a vozes na sua cabeça. Em nenhum caso Di Maio demonstra qualquer empatia por distúrbios mentais e se concentra em fazer autópsias daquilo que é possível pegar, como um ferimento, uma bala, tudo o que alcança com seu bisturi. As doenças do cérebro não são levadas em consideração. Não é para menos. Em certo momento ele reproduz uma expressão comum na escola de medicina, que submetia os alunos a uma “lavagem cerebral”: “Clínicos gerais tudo sabem, mas nada fazem; cirurgiões nada sabem, mas tudo fazem; psiquiatras nada sabem e nada fazem; e patologistas tudo sabem e tudo fazem, mas aí já é tarde demais”.
Di Maio não coleciona somente vitórias. Ele testemunhou a favor de um homem acusado de maltratar e matar o filho pequeno de sua esposa. Esse homem ainda está preso, apesar das provas contra a acusação. Também é da opinião de que a atriz encontrada morta na casa do produtor musical Phil Spector não teria sido assassinada. Ele indica como mais provável um suicídio acidental, que poderia ter ocorrido enquanto ela brincava sexualmente com a arma na boca.
Eu já presenciei uma necropsia e compartilho a sensação de Di Maio: ‘Quando estou diante de um corpo sem vida, vejo apenas uma casca. A alma já se foi’
Di Maio não se acovarda ao ir contra opiniões enraizadas. Como é o caso da morte de Vincent Van Gogh. Ele argumenta que o pintor não cometeu suicídio. Como ele chega a essa conclusão é muito interessante. Está lá no final do livro. Ele ainda exumou o corpo de Lee Harvey Oswald, assassino de John F. Kennedy, para colocar um ponto final em uma teoria da conspiração descabida e trazer sossego para a esposa do assassino.
Outros casos mostraram como assassinatos podem se apresentar como suicídio, acidentes podem ser confundidos com assassinatos, e suicídios podem parecer acidentes.
Um exemplo de falso suicídio é o de um oficial que simulou seu assassinato para que a família recebesse seu seguro de vida, que não ocorreria em caso de suicídio. Di Maio também revelou um falso homicídio ao analisar um ferimento de bala, sugerindo o suicídio da mulher e não seu assassinato pelo marido, que acabou sendo libertado da prisão após essa prova.
O legista diz buscar apenas a verdade e se coloca acima de questões morais, infladas por discursos midiáticos e usadas em beneficio de quem defende uma causa. Busca desmitificar mitos criados por Hollywood, como o de patologistas milagrosamente indicarem a “hora da morte” aos investigadores. A jornalista Mary Roach, em Para que serve um cadáver, fala de uma fazenda que expõe cadáveres ao sol para entender o processo de decomposição e ajudar peritos a entender o processo da morte, como a hora do óbito. É muito mais complexo do que parece. Di Maio diz que há variação de seis horas para mais ou para menos.
Eu já presenciei uma necropsia, para escrever um artigo, e compartilho a sensação de Di Maio: “Quando estou diante de um corpo sem vida, vejo apenas uma casca. A alma já se foi”. A medicina forense muitas vezes soa como idealista. Pode ser uma tentativa de reafirmação, de se colocar como algo fundamental e não digno do estigma que carrega. Não se trata de médicos fúnebres que têm qualquer aptidão para o mórbido. São pessoas que vão parar ali por uma história muito pessoal, como já terem um membro na família nessa área. Di Maio seguiu os passos de seu pai, o quarto legista-chefe da história de Nova York, de quem fala com admiração. “Ele via seu funesto trabalho como um instrumento para salvar vidas, um sistema de alerta antecipado contra epidemias, assassinatos e a tendência básica da mente humana de confiar mais na própria capacidade de discernimento do que nos fatos.”
Toda sua escrita está voltada para justificar o título e concluir que ele investiga o segredo de cada corpo, aquele ponto aparentemente invisível de uma necropsia, ou mal interpretado, que pode solucionar um caso. Mas esse segredo não alcança o mais profundo mistério de todos: nossas motivações pessoais. Motivações que podem levar à nossa morte ou à do outro. Esse segredo ele desconhece, e assume diversas vezes, quando solta uma afirmação que espanta vindo de um patologista que já abriu milhares de vezes todos os órgãos e tecidos do nosso corpo: “Não sei o que tem dentro do coração de um ser humano”.
Matéria publicada na edição impressa #12 jun.2018 em junho de 2018.
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