Infantojuvenil,
Deixem a sereiazinha chorar
Livros de Celso Sisto contam história de menina que perdeu o avô e de um touro feroz que sofre de amor
28nov2018 | Edição #18 nov.2018Agora pode chover é uma pérola. Cada palavra foi escolhida com a precisão que só os livros infantis e a poesia podem oferecer. São poucas mas certeiras para tocar o imaginário da alma. É muito difícil chegar a essa composição. Nada está fora do lugar.
Celso Sisto, o autor, tem currículo bem diverso em sua área de atuação: contar histórias para crianças e adolescentes. Não há uma vertente desse gênero que ele não cubra. Escritor, ilustrador, palestrante, professor, colunista. Ele fala com crianças e forma quem fala com crianças. Conseguir se comunicar com o público infantil é um dom misterioso. Não há receitas prontas, a qualidade é medida pela capacidade de abordar a essência da vida.
Agora pode chover é a história da menina Tatiana lidando com a memória de seu avô, que morreu. Ela não sente tristeza, mas saudade. Busca essa figura amada por toda parte. É um questionamento comum, entre crianças e adultos, quando as pessoas morrem: para onde vão os que simplesmente se vão?
As respostas estão na simbologia. Há teorias prontas oferecidas por crenças religiosas, e outras mais sutis, que pinçam significados nos elementos da natureza — algo tão presente nos indígenas e em outros povos nativos, que se relacionam com os bichos e com as plantas de uma forma já perdida por nós.
Mães e filhas
Tatiana encontra conforto na imagem de uma libélula, ao seguir um combinado feito entre ela e o avô. Sua mãe parece não compreender essa relação. Nada incomum. As mães estão focadas na rotina das crianças, em tentar prover a educação cotidiana básica, formulada para a sobrevivência da cria: não toque nisso, não coma o que não conhece, venha lavar as mãos, está na hora disso e daquilo.
A mãe dita o relógio, impõe limites, tenta educar da mesma forma que foi ensinada — como se honrasse seus antepassados mesmo sem perceber. Pode ser a submissão a uma pressão social ditando seu comportamento: ela observa pouco e sabe dizer não.
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Reina o ditado que criança não sabe o que quer e é incapaz de fazer reflexões profundas sobre o universo à sua volta. Parece haver uma crença generalizada de que não podemos falar sobre certos assuntos aos pequenos. A morte é um deles.
Evitar temas difíceis, como os conflitos e as perguntas sem respostas, não os impede de acontecer. A morte não irá se afastar das crianças se as mantivermos distantes da comunicação, da palavra. As crianças perdem os avós, os animais de estimação e até colegas da escola.
Não estamos acostumados a deixar perguntas no ar, sem prontos argumentos. Vemos isso como um fracasso, algo talvez aprendido na escola. Tiramos notas baixas quando não sabemos a resposta correta. Celso Sisto não oferece respostas: ele emociona por representar um sentimento, a imensidão da saudade.
As ilustrações de Anna Cunha falam mais do que uma expressão nitidamente triste: são as cores, a posição dos corpos, a direção dos olhares. Não há necessidade de ser sombrio.
Libélula é símbolo da transformação. Em algumas culturas, é associada à previsão de chuva. Em algumas crenças, ela já foi um dragão que se deu mal e virou libélula — por isso seu nome em inglês é dragonfly. Ela anuncia a tempestade, o despejo de emoção contida na nuvem, aquilo que estava reprimido e se esvai no momento certo: a água cai quando precisa cair.
Não nos acostumamos a deixar perguntas no ar, sem prontos argumentos. Vemos isso como um fracasso
Celso Sisto ainda publicou outro livro infantil neste ano: Blimundo, o maior boi do mundo, inspirado em um conto tradicional das ilhas de Cabo Verde, na África. A lenda apresenta um touro forte e selvagem, dono do próprio nariz. Sua força descomunal permite que não sucumba aos caprichos de ninguém, nem do temido Rei.
Blimundo simboliza o pensamento autônomo, a liberdade. O Rei, incomodado com a influência desse boi sobre seus súditos, envia tropas para assassiná-lo. Blimundo mata de sete em sete, de uma só vez. Ele é indestrutível. Mas é mesmo?
Calcanhar de Aquiles
Um menino tocador de cavaquinho conhece o segredo de Blimundo, seu ponto fraco: ele é apaixonado pela filha do Rei. Com sua música e a promessa de casamento com a tal donzela, o menino atrai o animal.
O boi mais forte do reino, apesar da potência e rebeldia, sucumbe ao encanto do amor. Ele morre com um golpe de navalha no pescoço achando que iria fazer a barba para se encontrar com a menina.
Um detalhe: Blimundo se apaixonou pela princesa devido a um feitiço. O amor, única esfera em que esse bicho não tinha liberdade, faz com que perca o livre-arbítrio. Sem escolhas, não há vida. Posso estar indo longe demais, mas, afinal, essa é a beleza das boas histórias infantis.
A ilustração da pernambucana Elma traz referências à cultura africana. As cores e os traços remetem a pinturas rupestres, contribuindo para o ar lendário e primitivo da história.
É um conto popular muito triste. Celso optou por não adaptá-lo com um final feliz. Lembro-me de ser apaixonada pela Pequena sereia, da Disney. Conheci o enredo original, de Hans Christian Andersen, quando deparei com a singela estátua de bronze da personagem pairando sobre a água no píer de Copenhagen. Ombros caídos, expressão triste, olhando o barco de seu grande amor ir embora. Naquele momento, senti-me traída. E também atraída por aquela figura que tanto me encantou.
Então eles não ficam juntos no final? Não. A pequena sereia se frustra. Assim como as crianças passam por diversas frustrações na vida e precisam, de uma forma ou de outra, lidar com elas. Blimundo morre na navalha. O avô de Tatiana não é ressuscitado. Temos o fim mais bonito possível: a sublimação da dor.
Matéria publicada na edição impressa #18 nov.2018 em novembro de 2018.
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