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O cabra da peste

Romance narra a trajetória de Alexandre Yersin, o discípulo de Pasteur que descobriu o bacilo e a vacina da peste bubônica

09nov2018 | Edição #3 jul.2017

Yersinia pestis é o nome científico da bactéria responsável pela peste bubônica, doença que causou uma cifra incalculável de mortes ao longo da história. Só na Idade Média, no século 14, quando ficou conhecida como peste negra, dizimou mais de 50 milhões de pessoas — estima-se que isso equivaleria a cerca de um terço da população mundial da época.

Originariamente uma patologia dos ratos, é transmitida ao homem através da pulga, descoberta feita por Paul-Louis Simond em 1897 — logo depois, ele viria ao Brasil para estudar a febre amarela. Ainda hoje é endêmica em certos lugares, como Peru e Madagascar, mas a terapia com antibióticos tornou-se altamente eficaz.

De modo talvez inesperado, há muitas associações possíveis entre essa doença e o nazismo, como nos revelou Albert Camus em sua obra-prima A peste, de 1947. O romance faz da luta contra a doença na Argélia metáfora da resistência francesa à ocupação alemã. Em alusão a Camus, Patrick Deville começa seu romance com a fuga de Alexandre Yersin, aos 76 anos, da França, na iminência da entrada da “peste marrom” (cor das fardas) no país em 1940.

Na Idade Média, queimavam-se judeus, acusados de serem responsáveis por espalhar a epidemia contaminando poços de água. Deville também aproxima os dois assuntos de forma menos direta, mas que ressoa até no título Peste & cólera, já que o bacilo da cólera foi identificado pelo cientista alemão Robert Koch, mais conhecido pela descoberta do micróbio da tuberculose, que leva seu nome.

Em 1894, o médico e bacteriologista Alexandre Yersin descobria, em Hong Kong, o bacilo que mais tarde receberia seu nome. Isso é parte do que nos conta esse premiado romance biográfico lançado em 2012 na França. É anterior a Viva! (2014), já publicado no Brasil (Editora 34), sobre os últimos anos de Léon Trótski.

Frases e capítulos curtos, escritos no tempo presente, recriam a vida fascinante do pesquisador e a trajetória política e cultural da França e de suas colônias, de meados do século 19 até a Segunda Guerra Mundial. Mas especialmente das últimas décadas dos 1800, quando a civilização parecia estar no apogeu, com uma inabalável confiança na ciência e no progresso. “Estamos na época em que o homem acaba de se tornar mestre e dono da natureza.”

O livro nos mostra o impacto das descobertas de Louis Pasteur (1822-95) e a força que ele exerceu sobre seus discípulos. Yersin decidiu estudar medicina quando o grande cientista fundador da microbiologia testava sua vacina antirrábica. Joseph Meister, primeiro ser humano imunizado contra raiva, aos nove anos, tornou-se porteiro do Instituto Pasteur — que o suíço passa a integrar logo que se forma —, suicidou-se com um tiro na cabeça quando o edifício foi invadido pelos alemães, décadas depois.

Yersin nasceu no cantão de Vaud, na Suíça, em 1863, estudou em Marburg (Alemanha), depois em Paris, e naturalizou-se francês para poder exercer a medicina. É porém redutor demais considerá-lo apenas um bacteriologista, por mais importantes que suas descobertas tenham sido (identificou a toxina da difteria, além da peste).

Era um curioso incansável que se entediava com a rotina. Poucos anos depois de iniciar suas pesquisas no grupo dos pasteurianos, abandonou tudo para ser médico a serviço da Marinha, atendendo em navios do império francês no Oriente. Isso rapidamente o enfada e ele se instala definitivamente na cidade de Nha Trang, na costa da Indochina (hoje Vietnã).

“Estamos na época em que o homem acaba de se tornar mestre e dono da natureza” 

“Nos campos da observação, o acaso só favorece os espíritos preparados”, escreveu Pasteur. De tempos em tempos é recrutado pelo Instituto Pasteur, que nesse período abre filiais no mundo todo, para alguma missão na Ásia. É assim que vai parar em Hong Kong, numa espécie de parênteses da vida isolada que leva. Lá, outro pesquisador, o japonês Kitasato Shibasaburo, discípulo de Koch, já domina a cena e ele não consegue um laboratório para trabalhar. Improvisa um lugar, mas fica sem o aquecimento que mantém o ambiente na temperatura do corpo humano. Acontece que o bacilo da peste se desenvolve melhor aos 28° Celsius, temperatura da cidade chinesa naquela época do ano. Fecha parênteses.

De Nha Trang partirá para expedições exploratórias floresta adentro e criará uma gigantesca fazenda multiprodutiva. Deville o considera “um enciclopedista iluminista”. Dedicou-se a estudar geografia, topografia, agronomia, meteorologia, zoologia etc. Seguiu com as pesquisas bacteriológicas, incluindo a vacina para a peste. Plantou seringueiras e cinchonas para produzir borracha e quinino e fez até uma bebida escura feita com folhas de coca.

Yersin se inspirou nos grandes exploradores de sua época, e Deville os traz para dentro da história, assim como uma profusão de cientistas, poetas e artistas, em digressões que dão ainda mais colorido ao livro. David Livingstone e Pierre Brazza com suas expedições no interior da África. Escritores que foram também exploradores como Rimbaud, que foi traficar armas no Oriente Médio, e Joseph Conrad no Congo com seu Coração das trevas. Ainda sobra espaço para Louis-Ferdinand Céline, o escritor e médico apoiador do nazismo que fez uma caricatura do círculo de Pasteur, do qual foi próximo, em Viagem ao fim da noite

Um narrador fantasma vindo do presente (2012) interfere vez ou outra na narrativa, mas não fica muito clara sua função ou necessidade. Ao final, faz um apanhado daquilo que aconteceu depois da morte de Yersin. Essas considerações poderiam fazer parte de um epílogo: o fantasma parece sobrar e não assombrar.

É desconcertante que Yersin tenha fama tão exígua fora do universo das ciências (em certa medida até mesmo dentro dele). Não há mistério no relato, sabemos quando ele vai morrer, qual a sua principal realização e que nosso herói é muito pouco afeito ao mundo das paixões. Mesmo assim o livro vibra a cada página, isso porque ele viveu com a obsessão de aprender sobre tudo, tarefa que conseguiu realizar até seu último suspiro, em 1943. Enquanto a Europa era destruída, ele produzia e plantava na Ásia. Deville faz um retrato vivaz: “Yersin é o demiurgo de um sonho acordado que se realiza”.

Quem escreveu esse texto

Fernanda Diamant

É editora da revista Quatro Cinco Um.

Matéria publicada na edição impressa #3 jul.2017 em junho de 2018.