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Narrativas viscerais

Tendo o corpo humano como herói, romance e livro de não ficção devem ser evitados por hipocondríacos

08nov2018 | Edição #2 jun.2017

Ao ler Diário de um corpo, romance do francês Daniel Pennac, que nos dá flashes da vida de um personagem desde a primeira juventude até a senilidade, me veio à cabeça uma frase de Macedonio Fernández, dita a outro escritor, o também argentino Leopoldo Marechal, numa conversa relatada pelo segundo, acerca da natureza do romance: “Um romance é a história de um destino completo”.

O romance do Pennac é isto: uma história do destino completo de um corpo, demarcado num diário mantido pelo narrador desde 1936, na França, quando ele tem doze anos, às vésperas da Segunda Guerra Mundial e da invasão do país pelos nazistas, até 2010, ano em que ele bate as botas, aos 87, já bisavô. As entradas do diário ora narram o dia a dia de um certo período e ano na vida do narrador, nunca nomeado no romance, ora dão grandes saltos de meses ou anos. São entremeadas por trechos de uma longa missiva que o narrador destina à sua filha. 

É essa filha, suposta amiga de Daniel Pennac, quem o convoca a ajudar a publicar o material que lhe veio às mãos logo após a morte dopai: o diário do falecido, dando conta de suas intimidades ao longo de mais de mais de sete décadas.

Como verá o leitor, trata-se da história de cada departamento anatômico e fisiológico do corpus narrandi, dos órgãos e múltiplos sistemas interligados, de seus materiais constituintes, suas secreções e excreções, tão celebradas quanto execradas. É o corpo transformado em trama literária, e os seus componentes em personagens atuantes e determinantes.

Os dramas humanos surgem quando algo começa a dar errado com essa turma orgânica. No caso do narrador, a lista é longa: um braço quase arrancado por uma mina terrestre, zumbido nos ouvidos, gastura estomacal, “a tirania da flatulência”, a uretra espremida por uma próstata que cresceu demais, que o obriga a andar com uma bolsa de urina presa à perna, ligada a uma sonda, pólipos hemorrágicos no nariz e as derradeiras doenças que lhe afetam o sangue (“Minha medula está cheia de blastos. Uma invasão petrificante. A fábrica para”) e o mandam pro saco.

Essa é, pois, a linha de força estruturante do romance, o corpo que fala e rege a narrativa. Para evitar que o recurso se congele num esquema demasiado evidente, Pennac estabelece fortes laços de afetividade entre os vários atores que participam do destino do narrador. No entanto, o esquema, ou estratégia narrativa, se quiser, está lá, firme e forte, como prova o inusitado índice remissivo, onde se arrolam, em ordem alfabética, todas as questões corporais abordadas no diário: coceira, axilas, peidos, cuspe, choro, olfato, orelhas, nariz, mijar, epistaxe, meleca, prepúcio, seios femininos. O índice funciona como guia de leitura: mesmo lido em ordem aleatória, se o leitor der conta do corpo inteiro, a história acabará ganhando sentido.

E que história é essa? A de um francês da província, nascido em 1923 ou 24, filho único, sempre às voltas com as demandas e os limites do corpo e com medos irracionais. Adolescente, se vê envolvido na Resistência, de onde sai para uma carreira, não explicitada, no serviço público. Aliás, o mundo externo e a História maiúscula passam ao largo da narrativa. Depois de se entender com o sexo, que lhe apronta umas falsetas no início da vida erótica, ele tem namoradas e amantes, até se casar com a mulher da sua vida. Com ela terá filhos, os filhos lhe darão netos, que lhe darão bisnetos. No final, aos 87 anos, doente e quase entrevado, advinhe só: o cara morre. Ponto final: o destino se completou.

Debaixo dessa aparente e intencional simplicidade, brotam as complicações que envolvem a circulação do corpo em contato com o mundo e com outros corpos. Temos, de cara, a mãe terrível do narrador, castradora implacável, capaz de dizer ao filho —um garoto que se cagou de medo fóbico de ser devorado por formigas durante uma atividade parabélica dos escoteiros: “Você tem medo de se cagar inteiro? O seu medo é mais nojento que a sua merda”.

O pai, venerado pelo autor do diário, é um tipo afetivo, dono de um corpo destruído por “gases alemães” na Primeira Guerra Mundial, e que logo morre. Quem salva a pátria emocional do menino é Violette, a empregada-babá-governanta da família, de origem rural, que faz o contraponto maternal à mãe, seca, ferina, detestável e, a seu modo, engraçada, ao menos para o leitor.

Vamos conhecendo os amigos de vida inteira do narrador, como Tijo, filho  de Violette, que nos brindará com piadas toscas e sem graça ao longo da narrativa. O narrador, porém, parece apreciá-las, e nisso está sua eventual graça. Outra amizade, uma companheira da Resistência chamada Fanche, é a única que nomeia o narrador, mas por um apelido muito pessoal: Minha Bomba. Depois vêm as mulheres, que o aparelho reprodutivo do “Minha Bomba” o leva a conhecer, nos brindando com ricos detalhes gráficos das trepadas.

Diário de um corpo ganha pontos também no quesito estilístico, de uma fluidez desidratada de retórica e adjetivos, admitindo apenas esparsas concessões poéticas e reflexivas. Lançado na França em 2012, o romance do Pennac teve a sorte de ser traduzido de forma competente e inspirada pelo também escritor, jornalista e editor Bernardo Ajzenberg.

Pennac, pelo que me informa a orelha de seu livro e Mr. Google se apressa a corroborar, é figurinha carimbada na cena literária francesa, com uma batelada de romances, ensaios e artigos, histórias infantis e peças teatrais. Outros títulos dele já saíram no Brasil, inclusive O ditador e a rede, ambientado em Belém, onde Pennac morou por dois anos, acompanhando a mulher, que veio dar aulas numa universidade cearense.

Pennac ganha pontos no quesito estilístico, de uma fluidez desidratada de retórica e adjetivos 

A temporada nos trópicos na certa lhe inspirou uma cena tão quente quanto inesperada do Diário de um corpo. É, quando o autor do diário, já com “74 anos, 5 meses e 6 dias”, forma como são identificadas as entradas do diário, dá com os seus já velhos costados em Belém, para uma rodada de palestras e encontros com militantes de uma causa não identificada, mas que, de alguma forma, parece ter a ver com “bioética”. A mão de uma mulher toma da sua repentinamente, e ele, que não tem atividade sexual já faz alguns anos, se vê alvo de uma cantada por parte de sua linda intérprete e cicerone, uma negra de 25 anos chamada Nazaré.

A cantada logo se faz carne: “sua língua empreendendo um lento movimento em espiral, seus lábios num vaivém de escultor, e eu desabrochando, juro, sim, modestamente mas de verdade, Nazaré, Nazaré, e endurecendo, juro, pouco a pouco mas com firmeza, Nazaré, oh, Nazaré”. O narrador sente-se “ressuscitado”. Para a cena completa, procure “Ressurreição” no índice remissivo

E, por falar nele, eis que, por suspeitíssima coincidência, me cai na mão outro índice remissivo, que acompanha o recém-lançado Da cabeça aos pés: histórias do corpo humano, de Gavin Francis. O dr. Francis é um médico escocês com experiência clínica, adquirida em postos de saúde na África, na Índia e até numa expedição à Antártida. Atualmente, trabalha num hospital de Edimburgo, para onde afluem os pacientes cujas histórias recheiam o livro, de mistura com explicações técnicas sobre o funcionamento da máquina humana e boas pitadas de erudição, buscando sempre relacionar os órgãos afetados com o histórico de sua compreensão através dos séculos e com sua presença na literatura. É do gênero que eu chamaria de entretenimento médico, já praticado por outros doutores-escritores.

E dá-lhe índice remissivo. Aponte o dedo para pulmão, por exemplo. O dr. Francis nos explica que esse é o nosso órgão mais leve, quase todo ar, e que seu nome em inglês, lung, de remota origem indo-européia, através do germânico antigo, significa “leve”. E que os chineses, hindus e gregos os consideravam “a  interface entre o mundo espiritual e o físico”. 

Na sequência, o dr. Davis narra o caso pulmonar de um encanador de 76 anos que fumou quarenta cigarros por dia ao longo dos últimos 65 anos e agora padece duma tosse esquisita que, depois de algumas páginas de explicação sobre o funcionamento e as possíveis complicações no aparelho respiratório, inclusive o câncer de pulmão, vai levá-lo até um forno crematório — o mesmo cuja chaminé fumegante de almas libertas do corpo ele avistava da janela de seu quarto de moribundo, só que soprando as cinzas de outras pessoas. C’est la vie, diria Daniel Pennac.

E por aí vai. Se pegarmos os intestinos, por exemplo… Quer dizer, melhor não pegarmos literalmente os intestinos, mas apenas localizar menções a eles nos dois livros, exercício que vale particularmente a pena, sobretudo pra quem é fã de um humorzinho anal-escatológico.

No Diário são várias as referências intestinais. Duas são impagáveis: uma envolve charutos, e talvez convenha deixá-la para o desfrute privativo do leitor. A outra, a rigor, também conviria deixar de lado, mas não resisto a consigná-la: “Após uma evacuação irrepreensível, de uma peça só, perfeitamente lisa e moldada, densa mas não pegajosa, com cheiro, mas não fedorenta, com um corte perfeito e um marrom homogêneo, produto de uma única empurrada e com uma passagem suave para fora, que ainda por cima não deixa nenhuma marca no papel, uma olhadinha de artesão satisfeito: meu corpo trabalhou muito bem.”

Do lado de Da Cabeça aos pés a coisa é bem mais complexa. Depois da habitual descrição do órgão e de seu funcionamento, sem dispensar o uso de imagens vivazes (“Em termos de função, o reto é realmente apenas uma sala de espera: um lugar para as fezes se acumularem até que seja conveniente deixá-las sair”), o dr. Francis narra o caso do paciente que lhe apareceu com um raro caso de corpo estranho entalado no reto. Uma chapa revelou a natureza do corpo estranho: um frasco de ketchup. O médico-escritor não poupa recursos hiper-realistas para narrar os procedimentos que se seguiram a essa constatação: “empurrei um dedo enluvado em seu reto. ‘Apenas empurre para baixo’, falei, ‘pressione como se estivesse tentando defecar’. Na ponta de meu dedo, tão profundamente enfiado quanto possível, senti a borda de vidro duro — afundada demais para eu conseguir pinçá-la.”

Desnecessário dizer quão frustrante é procurar o segredo da saúde e da virilidade eternas na literatura realista ou na de entretenimento médico

As referências aos aspectos corporais ligados à sexualidade, então, me fariam gastar todo o papel disponível aqui. Do lado do dr. Davis, cito uma passagem que aborda, digamos, em profundidade, o aparelho procriativo feminino. O caso relatado é o do casal que queria ter filhos e, depois de tentar em vão vários procedimentos laboratoriais, indicados por toda sorte de médicos, e de praticar a cópula como uma obrigação com hora marcada e uma finalidade explícita, ambos terminam por desistir da empreitada conceptiva.

Ato contínuo, passam a ter relações pautadas tão somente pelo puro erotismo, a arte pela arte, a velha e boa sacanagem. Tempos depois, o casal reaparece no consultório, ela grávida, sem nenhuma ajuda externa que não fosse a bíblica, fornecida pelo  maridão, como se corroborasse a antiga crença, sem base científica, de que o orgasmo traz a fertilidade. 

Já o narrador do Diário, além do exemplo de sexo gerontófilo já citado, fala do assunto desde as poluções noturnas da puberdade, passando por tentativas frustradas de fazer sexo (a primeira resulta numa solene brochada: “havia em mim alguma coisa morta ou que não queria nascer”), pela gloriosa perda da virigindade no dia dos seus 23 anos (“ela afasta as minhas mãos e me segura ali, enquanto eu gozo, tudo vindo do mais profundo de mim mesmo, ela me mantém preso na sua boca e engole demoradamente, pacientemente, resolutamente, completamente o esperma da minha desvirginização”) e pela descoberta do grande amor, que lhe proporciona a melhor trepada de todos os tempos (“há três meses eu e Mona não saímos de nossa cama, onde nos encaramos desde o início no atacado e no varejo, no agora e para sempre. Nácar, seda, chama e pérola, a perfeição da vagina de Mona!”).

Pode ser um passatempo divertido cruzar as diferentes abordagens e histórias no Diário de um corpo e em Da cabeça aos pés. Convém advertir, no entanto, que as duas leituras podem induzir o leitor a um estado de hipocondria de duração e intensidade variáveis, pois é impossível não se colocar no lugar do narrador de Pennac, de um lado, e dos pacientes do dr. Gavin Francis, do outro.

No caso do francês, você talvez se inquiete ao chegar ao registro da idade do narrador que corresponde à sua. Na juventude ou na velhice, sempre há um perrengue físico a considerar. Se você não padece do problema, quem te garante que não virá a padecer? No meu caso, quando cheguei à entrada do diário correspondente à minha idade atual, o narrador já tinha pendurado as chuteiras sexuais com a esposa, o que, para um monogâmico apaixonado como ele, significava o fim da sua vida sexual: “Nosso desejo se esgotou sob a proteção cheirosa do nosso amor”.

Fale por você, mano, foi o que me veio à cabeça, batendo na madeira. A seguir, tem um dente quebrado, apesar da sua dieta de velhinho: “Peito de frango, abobrinha gratinada, bolo de mirtilo, conversa tranquila…”. O narrador conclui, cavo e melancólico: “Chegou o verdadeiro começo da velhice. Essa quebra espontânea de um dente. Unhas, cabelos, dentes, o colo do fêmur, caímos como pó dentro do nosso próprio saco.”

E eu que ainda me considero, senão jovem, ao menos jovial…

Ainda no capítulo dedicado à minha idade, ao tentar se levantar da espreguiçadeira, o narrador sente enorme dificuldade: “Dor nos quadris, enrijecidos. Durante alguns segundos, a sensação de estar preso no gelo. A partir de agora, meu corpo se constitui em um obstáculo entre o mundo e mim”. Pra completar, a imagem que o espelho lhe devolve não é das mais animadoras: “Coitado do vovô”, lhe diz seu neto, “você é tão feio que dá medo a si mesmo!”.

Desnecessário dizer quão frustrante é procurar o segredo da saúde e da virilidade eternas na literatura realista, como a de Daniel Pennac, ou na de entretenimento médico, como a de Gavin Francis. O autoconhecimento que ambas proporcionam é sempre má notícia, como acontece na psicanálise. Porque o ser humano não é mesmo flor que se cheire.

É possível, no entanto, encontrar em ambos os livros motivos para eventuais risadas, alguns conselhos profiláticos e um caminho pra gente ir se acostumando com a ideia de que, bem, desculpe dizer, vamos todos morrer.  

Quem escreveu esse texto

Reinaldo Moraes

É autor de O cheirinho do amor (Alfaguara).

Matéria publicada na edição impressa #2 jun.2017 em junho de 2018.