Livros e Livres,
Uma longa batalha
Livro resgata a participação do movimento LGBTQIA+ brasileiro para incluir direitos na Constituição
26set2023 | Edição #74Trinta e cinco anos se passaram desde a promulgação de nossa Constituição, em 5 de outubro de 1988. Nesse período, estudiosos de diversas áreas se debruçaram sobre o processo constituinte, e neste aniversário certamente veremos uma nova série de análises. Mais uma vez, serão apontadas as contradições de nossa transição para a democracia, cuja negociação permitiu que, até hoje, militares ligados à ditadura atuem como força política relevante no país. Mas será que ainda há algo que desconhecemos sobre esse processo?
A partir de uma rica pesquisa nos Anais das Constituintes e no Arquivo Edgard Leuenroth (Unicamp), Rafael Carrano Lelis resgatou a participação ativa do Movimento Homossexual Brasileiro (mhb) na elaboração da Constituição e suas reverberações, reconstruindo no seu A orientação sexual na Constituinte de 1987-88 um aspecto pouco conhecido da história constitucional brasileira e daquilo que hoje chamamos de movimento LGBTQIA+. O livro é o trabalho mais completo sobre o tema e relata de forma minuciosa os argumentos apresentados nas quatro principais ocasiões em que a inclusão de proteções para homossexuais foi discutida pelos constituintes.
Católicos e evangélicos tiveram papel fundamental em barrar direitos de liberdade sexual
No final de abril de 1987, um dos pioneiros do ativismo em nosso país fez dois discursos na Assembleia Nacional Constituinte (ANC), que antecedeu a formulação da carta densa em direitos. Em 29 de abril, João Antônio Mascarenhas participou da Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas com Deficiência e Minorias; no dia seguinte, discursou na Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais e das Pessoas com Deficiência e Minorias. Foi representando o grupo carioca Triângulo Rosa e, em certa medida, todo o movimento homossexual.
Como mostra o autor, o objetivo de Mascarenhas era claro e até chamado de “demanda única”: a inclusão da proibição da discriminação baseada na orientação sexual no texto que viria a ser o artigo 3º de nossa Constituição.
Para isso, foram realizadas articulações com outros movimentos sociais, pesquisadores e políticos. Um dos primeiros passos foi mapear os parlamentares que poderiam apoiar a demanda. Acreditando em uma possível solidariedade entre grupos socialmente oprimidos, em parceria com a feminista negra Lélia Gonzalez, identificou como potenciais aliados os “negros e mulatos” na Constituinte. No total, o grupo enviou mais de 470 cartas para 288 constituintes.
Roberta Close e transfobia
O apoio do movimento homossexual à “demanda única”, contudo, teve suas contradições internas. Com cuidado para evitar anacronismos, Lelis demonstra que o argumento pela inclusão do termo “orientação sexual”, apesar de formulado em diálogo com pesquisadores e ativistas de outros segmentos do movimento, não esteve livre de transfobia. Em seus discursos, Mascarenhas tentou construir uma imagem positiva dos homossexuais, rejeitando estereótipos frequentemente propagados pela mídia. No entanto, ao fazer isso, transferiu esses estereótipos para as travestis, a quem chamou de “travestis-prostitutos”. O erro não parou por aí. Ao explicar por que o termo “sexo” não abrangia orientação sexual, afirmou: “Roberta Close, por mais feminino que seja, por mais silicone que use, por mais hormônios que tome, por mais elegantes as roupas femininas que vista, continuará sendo homem”.
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Como era de se esperar, a “demanda única” do movimento homossexual brasileiro não foi recebida com entusiasmo pela anc. O desfecho é conhecido: Mascarenhas e o Triângulo Rosa não conseguiram incluir “orientação sexual” na Constituição. Até hoje, o termo não está lá. Mas constituições estaduais e leis municipais avançaram nos anos seguintes. Apesar da ausência de menção expressa, em decisões recentes, o Supremo Tribunal Federal tem entendido que orientação sexual e identidade de gênero são bens jurídicos protegidos constitucionalmente.
Incômoda continuidade
O que torna a análise detalhada desse processo tão interessante é perceber a incômoda continuidade entre discursos proferidos na anc por deputados conservadores como Eliel Rodrigues e Salatiel Carvalho, e aqueles que ouvimos hoje de figuras como Damares, Bolsonaro e outras lideranças que atacam os direitos da comunidade LGBTQIA+.
A união entre católicos e evangélicos desempenhou papel fundamental em barrar o avanço dos direitos de liberdade sexual na Constituinte. A resistência foi estruturada principalmente em termos religiosos: a homossexualidade era considerada uma afronta direta aos valores familiares cristãos. Dessa forma, aqueles mais vocais contra a pauta não apenas criticavam a proposta, mas convocavam colegas religiosos a se unirem contra o que consideravam uma ofensa ao próprio Cristo.
Além disso, o contexto da emergência da epidemia de aids acrescentava tons ainda mais perversos no discurso conservador, que alegava que proteger a orientação sexual seria um risco para a sociedade, pois permitiria a livre circulação do hiv ou até mesmo um estímulo à epidemia. Esta chegou a ser retratada como uma forma divina de punir os homossexuais, uma maneira de controlar a liberdade sexual excessiva, como afirmou o constituinte Costa Ferreira. Apesar de mostrar a força da bancada religiosa, Lelis ressalta a importância de não considerar os cristãos um grupo homogêneo, especialmente porque uma das principais defensoras da inclusão da orientação sexual na Constituição foi Benedita da Silva, sabidamente evangélica.
Pode parecer trivial, 35 anos depois, revisitar esses debates, mas examinar o passado é compreender e intervir no presente. Nesse sentido, resgatar a história de nossas lutas pelos direitos sexuais e reprodutivos é crucial para enfrentar as tentativas atuais de nos desumanizar. E o livro de Lelis, até hoje o trabalho mais completo sobre o tema, torna-se leitura incontornável para quem busca aprender mais sobre essa batalha por direitos.
A editoria Livros e Livres, focada em títulos com temática LGBTQIA+, tem o apoio do Fundo de Direitos Humanos da Embaixada do Reino dos Países Baixos.
Matéria publicada na edição impressa #74 em setembro de 2023.