A Feira do Livro,

A Parada é democrática e antifascista, diz Trevisan

Pioneiro da luta por direitos LGBTQIA+, escritor falou sobre memórias, masculinidades e preconceito

08jun2023 | Edição #70

Uma das referências da luta por direitos da comunidade LGBTQIA+, João Silvério Trevisan falou de democracia, masculinidade, dores e resistência na mesa literária Meu irmão, eu mesmo, mesmo título do segundo livro de memórias que está lançando pela Alfaguara. Em conversa com o escritor e professor de direito Renan Quinalha, colunista da Quatro Cinco Um, o escritor de 78 anos analisou a evolução da comunidade nas últimas décadas.

“Não podemos repetir quatro anos de fascismo nesse país. Se há alguma coisa que a comunidade pode oferecer, e está oferecendo, é a capacidade de amar. Estamos ensinando esse país a amar”, disse Trevisan, sob aplausos da plateia lotada. “A Parada LGBT+ é uma experiência brasileira de democracia e de como ela é resistente ao fascismo”, completou.

O autor de Devassos no paraíso, uma investigação da homossexualidade no país desde o período colonial, também disse ter observado um crescimento da consciência política da comunidade. Para ele, todas as iniciativas fascistas que eclodiram no país nos últimos anos perceberam que há “uma muralha a quebrar”. “E essa muralha muito resistente somos nós”, disse.

Masculinidades

Em Meu irmão, eu mesmo, o autor lembra a relação com o irmão mais novo, Cláudio, que morreu aos 48 anos de câncer linfático na mesma época em que ele descobriu estar infectado pelo HIV.

O processo de escrita, disse, se iniciou há quase 30 anos, quando tentou fazer o irmão não encarar a doença de maneira trágica. No livro, Trevisan relembra a ligação de amor com o Cláudio, que começou ainda na infância, quando ele, mais velho, assumiu em alguns momentos o papel de figura paterna que o pai, alcoólatra, não exercia.

“O Cláudio começa a se encontrar comigo através da figura paterna. E naquele elemento da figura paterna que não era a agressividade de quando meu pai batia na minha mãe e em mim. Um outro horizonte para o masculino além da toxicidade que víamos ao nosso redor”, lembrou.

As memórias do pai, retratado no primeiro volume de memórias, Pai, pai (Alfaguara, 2017), também permearam a conversa. O escritor contou como a relação conturbada com ele desde a infância atravessou toda sua vida e seu entendimento sobre o masculino.

“O processo de escritura do livro, que correspondeu a uns vinte anos de análise, foi intensíssimo até chegar à compreensão, do outro lado do espelho, desse masculino tão agressivo que era meu pai”, disse. “O que eu vi detrás do espelho foi um homem totalmente indefeso, fragilizado, que buscou nos trinta anos de alcoolismo algum tipo de redenção.”

O terceiro volume das memórias, e que segundo o escritor foi o primeiro a ser escrito, terá como fio condutor outro homem, com quem viveu uma separação que considera sua maior dor. O livro, disse, será o único escrito em terceira pessoa, ainda que revele desde o início ser ele o protagonista da história.

Aids e preconceito

Trevisan comentou ainda sobre a decisão, em acordo com os irmãos, de que não tornaria pública sua infecção pelo HIV, num momento histórico em que receber o diagnóstico de aids ainda era visto como uma quase sentença de morte. O escritor contou por que só agora, em Meu irmão, eu mesmo, decidiu tornar pública sua soropositividade.

“Cheguei à conclusão que o estigma me atingiria de maneira redobrada. Abri caminhos para a comunidade LGBT e levei muitas pauladas. Conscientemente, tomei a decisão de me proteger”, disse.

Segundo o autor, em meio à incerteza e falta de políticas públicas, havia um clima muito doloroso de que o próprio desejo carregava a morte, o que o fez compreender o preconceito dentro da comunidade. “Estávamos todos em desespero, acossados pela comunidade heteronormativa por sermos acusados daqueles que carregavam a peste gay.”

Quem escreveu esse texto

Amauri Arrais

É jornalista e editor da Quatro Cinco Um.

Matéria publicada na edição impressa #70 em maio de 2023.