Literatura,

Uma janela para a Rússia

Escolhida para o Clube do Livro 451, a revista ‘Granta’ destaca a importância da cultura russa em um momento delicado

31out2022 | Edição #64

Os primeiros registros fotográficos de “Rússia em dois tempos”, de Mauro Restiffe, foram feitos em 1990, em Moscou e São Petersburgo. Em 2015, o fotógrafo paulista retornou às duas cidades, onde flagrou outras cenas. O resultado da justaposição nos sugere que o sentido dos dois tempos não são apenas marcos temporais, mas a duplicação do olhar. Para além das duas cidades, as fotografias se alternam entre público e privado, suntuosidade urbana e modéstia dos apartamentos, o peso dos casacos de inverno e a leveza de uma camisola. Ao criar esses contrastes, Restiffe captura a característica mais evidente da Rússia: a contradição. E ele enquadra as imagens a partir de janelas, o que faz lembrar a ideia do tsar Pedro, o Grande, de São Petersburgo, ser uma “janela para a Europa” — ideia bastante contraditória. Afinal, não está a cidade na própria Europa?


Granta em Língua Portuguesa: Rússia (vol. 9)

Hoje, o presidente Vladimir Putin tem tentado fechar as janelas do país para o continente. A revista Granta em Língua Portuguesa se propõe, então, a mantê-las abertas. Na apresentação, o editor Pedro Mexia menciona que, diante da eclosão da guerra na Ucrânia, em fevereiro de 2022, mais fácil seria “cancelar” a Rússia, porém ela “não se confunde com os regimes que tem em cada momento, ainda que as tentações imperiais e despóticas venham de longa data”. Isso porque, segundo o editor Gustavo Pacheco no segundo texto introdutório, o país “deu à humanidade muitas das mais belas e poderosas obras de arte já criadas”.


Fotos de Mauro Restiffe da série “Rússia em dois tempos”

Entre as autoras russas da edição está Ludmila Ulitskaya, com seu conto “A pobre, feliz Kolivânova”. Nele, a pré-adolescente Tânia Kolivânova se encanta pela nova professora de alemão do ensino secundário, Ievguênia Aleksêievna Lukina, e quer lhe comprar flores de presente para o Dia Internacional da Mulher. Entretanto, a pequena não tem dinheiro para tal e pede trocados para a irmã mais velha, mas esta sugere que deixe o vizinho Churik “pegá-la de jeito”. Retrato da pobreza dos anos soviéticos stalinistas, o conto vai realçando os contrastes ao mesclar prostituição e ingenuidade, precariedade e inventividade com humor e ironia fina.

Ulitskaya faz par com Tatiana Tolstaya, outro grande nome da literatura contemporânea russa. Em “O quadrado”, Tolstaya é mordaz acerca da dessacralização da arte e da sociedade, vigente no século 21. Ao narrar a trajetória de Kazimir Maliévitch e seu Quadrado preto e a busca espiritual de Liev Tolstói em A morte de Ivan Ilitch, a escritora faz uma crítica à arte contemporânea, à equiparação da vida com a morte e à busca constante por novidades que torna tudo absolutamente “sem sentido e sórdido”.

Forma literária russa

Afora esses dois textos genuinamente russos, há na Granta outros em que a forma literária se assemelha aos procedimentos de escritores do país. É o caso de “Rezarei bastante para que ela volte viva”, do porto-alegrense Reginaldo Pujol Filho. Narrado em segunda pessoa, o conto traz a história de uma cadelinha lançada ao espaço durante a Guerra Fria. Mas não é tanto o enredo, e sim o modo como o autor constrói o texto que o aproxima daquilo que o crítico formalista Viktor Chklóvski chamou de ostranenie, ou “estranhamento”. Ao pôr em gravidade zero a visão comum da narrativa da corrida espacial, o escritor desautomatiza o ponto de vista sobre a heroína Laika, como Tolstói fez em “Kholstomier”. E por falar em desautomatização e Tolstói, Hélia Correia, em “A posse”, encarna Anna Kariênina e questiona o destino que seu criador lhe deu, numa espécie de autocrítica literária ficcional.

Já Elif Batuman, em seu misto de ensaio e reportagem “Quem matou Tolstói?”, vai até Iásnaia Poliana — onde viveu o conde e, portanto, um reduto sagrado para os tolstoístas — para um congresso universitário. O texto se liga à Rússia não somente pelo tema, mas pelo procedimento de mescla de gênero textual tão típico do país em que política, literatura, filosofia e religião costumam estar presentes no mesmo ensaio. Além de humor, é claro.

No campo da ficção, outras presenças além de Tolstói perpassam o imaginário dos escritores que integram a revista, caso de “Aleksandr Púchkin, um poeta célebre e desconhecido”, de António Pescada, e “O século de Nadejda Mandelstam”, de Ana Matoso. No primeiro, Pescada chama a atenção para o “grande sol da poesia russa”, expressão do crítico Vladímir Odóievski que pode parecer exagerada diante da pouca difusão do poeta por aqui.

No segundo, Matoso recupera Memórias, de Nadejda, que não pôde publicar sua obra até entregar ao mundo os poemas do marido, o poeta acmeísta Ósip Mandelstam, perseguido e morto pelo regime stalinista. O ensaio revela fatos sobre Nadejda, como o episódio em que ela costurou cópias dos manuscritos do marido nas fronhas dos travesseiros para não serem apreendidos pelos agentes do Estado. Ou ainda a cena em que Nadejda trabalha no período noturno em uma tecelagem murmurando os poemas de Ósip para memorizá-los, porque os papéis poderiam ser confiscados.

Apesar de ter valor de resgate histórico, o texto de Matoso peca por partir do conceito de totalitarismo de Hannah Arendt. Com o conhecimento que temos hoje sobre a União Soviética, poderíamos relativizar o achatamento que a teórica faz entre urss e stalinismo. Afinal, já basta de clichês sobre o comunismo no Brasil de 2022. Os ensaios jornalísticos de José Pacheco Pereira, compilados em “Política: diário russo, azeri, georgiano e ucraniano”, dão muito mais conta do caráter multifacetado e complexo da política russa do que outros textos da revista, como “A fila”, de Amor Towles.

A Rússia ‘não se confunde com os seus regimes, ainda que as tentações despóticas venham de longa data’

Sobressaem os escritos de André Sant’Anna e de Masha Gessen, que partem de memórias afetivas para interpretar os referentes culturais russos. São capazes de direcionar o olhar do leitor à janela aberta para a Rússia, tal como o protagonista no trem de “Incêndio na estepe”, de Pepetela. Nessa viagem de observação somos levados à “Sibéria” de Colin Thubron, onde se vê a variedade geográfica, econômica, religiosa e étnica russa. Nesta última categoria, temos fotos de Mariana Viegas do making off de Tofolaria, documentário de Sharunas Bartas sobre o povo tofalar.

Por fim, depois de folhear as páginas da Granta, é como se desencaixássemos uma matrioshka ou experimentássemos as nuances de sabor de uma salada russa, sabendo que quaisquer dessas imagens batidas não dão conta da grandiosidade daquela cultura.

Nota do editor: A editora Tinta-da-China Brasil é parte da Associação Quatro Cinco Um.

Quem escreveu esse texto

Eloah Pina

Editora, é mestre em Literatura e Cultura Russa pela USP.

Matéria publicada na edição impressa #64 em outubro de 2022.