Literatura,

Fabulações soviéticas

Contos de Liudmila Petruchévskaia abrem janela para compreender a vida e a literatura russas durante o stalinismo e depois

20nov2018 | Edição #11 mai.2018

Em Era uma vez uma mulher que tentou matar o bebê da vizinha, da russa Liudmila Petruchévskaia, a fórmula mágica, o protagonismo feminino e o tema sombrio estampados já no título deixam claro o que nos esperar. Publicada pela primeira vez em 2009 e vencedora do prêmio World Fantasy Award no mesmo ano, a coletânea é muito mais que “contos de fadas assustadores”. 

Esses 21 contos são uma bela porta de entrada para a literatura russa contemporânea. Embora pouco se saiba, entre nós, sobre a literatura russa após os anos 1990, foi a partir de então, com a Perestroika e o governo Gorbatchov, que as artes encontraram um ambiente favorável para prosperar: a ausência de censura oficial.

Bem antes disso, Petruchévskaia já escrevia e fazia o que os russos chamam de pissat’ v stol — literalmente, “escrever dentro da mesa”, semelhante à nossa expressão “escritor de gaveta”, muito embora a gaveta não fosse exatamente o lugar dos textos da autora. Nos anos 1970, os escritos de Petruchévskaia circularam em samizdat, isto é, cópias manuscritas ou datilografadas de textos proibidos, que eram lidos clandestinamente. 

Samizdat

Na época, a estética vigente e obrigatória para a arte oficial era o realismo socialista: realista na forma e socialista no conteúdo. Porém, subjacente a ela, em samizdat, circulavam os mais variados gêneros, temas, linguagens e estéticas. Entretanto, o contato entre essas formas de desenvolvimento artístico era escasso, e quase não havia possibilidade de troca, o que tornava o processo criativo excessivamente individual e solitário.

Com o fim da censura, essa espessa camada de atividade literária fragmentada veio à tona, o que levou alguns estudiosos a tentar categorizar o mosaico como “pós-modernismo”. Se é obviamente uma má ideia reduzir determinada literatura a uma vertente estética predefinida, no caso russo é ainda mais problemático. O stalinismo suprimiu o desenvolvimento do modernismo no país, extinguindo a possibilidade da consolidação de uma base para um movimento “pós” modernista. Houve naquele período um colapso da linearidade histórica, que está registrado em várias características da literatura russa contemporânea.

Em Era uma vez uma mulher… isso fica claro, e é quase metafórico, pela quebra da estrutura narrativa típica, construída com começo, meio e fim. O conto “Eu te amo” começa in media res, ou seja, “no meio das coisas” (“Com o passar do tempo…”); o desfecho de “A nova família Robinson” é inconcluso (“Eu e meu pai estamos desbravando um novo refúgio”); e há ainda outros, como “A vingança”, que, à maneira de Tchékhov, começam forte e terminam pianíssimo.

A semelhança com Tchékhov não significa pouco: a intertextualidade na literatura russa pós-1990 é largamente usada como ponte para suprir essa pausa histórica, a perda do passado, numa tentativa de filiação, de retomada de memória, de inserir-se no mundo e ter o seu valor reconhecido oficialmente, já que são textos de origem alternativa.

Nos contos de Petruchévskaia há diversos intertextos: o gato preto de Alan Poe, em “Higiene”; referências da Odisseia em “O deus Posêidon”, sátira do episódico bíblico da Ressurreição de Lázaro em “O milagre”, ou até alusões mais remotas, como a família suíça Robinson, popularizada pelo seriado estadunidense homônimo em “A nova família Robinson”. Esse intertexto explícito é irônico e bem-humorado, e, em “O segredo de Marilena”, o leitor esboça um sorriso quando o segurança-general das irmãs dançarinas sugere escrever um romance chamado “Os sofrimentos do jovem V”.

Além das referências literárias explícitas, há outra camada intertextual mais profunda que dialoga com a tradição clássica russa: os skazki (contos de magia).

O procedimento não é inédito. Tolstói, por exemplo, já havia se apropriado do gênero para escrever contos. Porém, o resgate desses textos na literatura pós-soviética, precisamente em Era uma vez uma mulher…, se dá de outro modo: cria-se, a partir da estrutura do folclore tradicional, um folclore urbano, e transporta-se a realidade cotidiana para o universo da fantasia, da magia, da transformação e do sobrenatural.

Tudo aquilo que é inesperado ou inexplicável, doloroso ou difícil de entender na brutalidade diária aparece como num passe de mágica (personagens se esfumaçam, corpos somem e reaparecem, mortos retornam) e com frequência se dilui a crueza da morte, de doenças, de assassinatos e das condições precárias da vida em uma atmosfera onírica.

Nessas condições, Petruchévskaia representa metonimicamente o dia a dia soviético. Sem as pretensões de uma ficção realista ou de cunho histórico, insere imagens e personagens recorrentes da época que viveu: apartamentos coletivos, soldados, pessoas enviadas a manicômios, escassez de comida e dinheiro, fugas, velhas viúvas. A identificação desses elementos cotidianos, somada à presença de personagens típicos dos skazki (a menina-repolho, a menina-nariz, Marilena, a fada Pão com Manteiga, os diversos órfãos, para citar alguns) torna as narrativas grotescas ao modo de Gógol.

Mas, no que diz respeito ao cânone literário russo, Petruchévskaia não é apenas herdeira da contística de Tchékhov ou do humor de Gógol. Com sua linguagem direta e cortante, Liudmila é uma das mais importantes escritoras russas contemporâneas  por mesclar e absorver a literatura que veio antes dela, causando a desautomatização do olhar do leitor. Indispensável para a compreensão da literatura contemporânea russa, Era uma vez uma mulher que tentou matar o bebê da vizinha promete mostrar ao leitor brasileiro o lado cômico das sombras do passado russo. 

Quem escreveu esse texto

Eloah Pina

Editora, é mestre em Literatura e Cultura Russa pela USP.

Matéria publicada na edição impressa #11 mai.2018 em junho de 2018.