Literatura,

Uma Atenas tropical

Otto Lara Resende, cronista do apogeu da cultura brasileira, escreveu perfis de artistas e escritores que ganham reedição depois de mais de vinte anos

14nov2018 | Edição #8 dez.17-fev.18

Entre as décadas de 1930 e 60, sobretudo na impressão de um paulista provinciano como o autor desta resenha, o Rio de Janeiro foi uma espécie de Atenas tropical. Não apenas a capital à beira-mar de uma das economias que mais cresciam no mundo, mas o cenário de uma explosão cultural que talvez nunca venha a ser suplantada entre nós.

Afora a arquitetura de Lúcio Costa, Oscar Niemeyer e Affonso Reidy, o aspecto mais saliente dessa explosão era o musical, com a exuberância de fusões criativas que acompanhou a rápida expansão do rádio e do disco e que colocaria a música popular brasileira num nível semelhante ao da americana e da cubana, as outras duas grandes semeaduras do substrato africano.

Mas o mesmo impulso de liberdade, rigor e ambição estava por trás da poesia de Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Vinicius de Moraes, dos romances e contos de Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Clarice Lispector, das peças teatrais de Nelson Rodrigues, das crônicas de Rubem Braga — todos eles moradores da zona sul carioca ao menos em boa parte daquelas décadas. 

A ambição de seus propósitos só pode ser aquilatada em contrapartida a certa autoconfiança fresca e ingênua, no espírito do ditame do poeta americano Wallace Stevens de que a ignorância é a fonte da originalidade. O próprio acanhamento de ambiente social e geográfico tão restrito, ao mesmo tempo o mais cosmopolita do Brasil, terá contribuído para conferir voltagem à obra desses autores.

As raízes da tradição literária do Rio estão na transferência da Corte (1808-1821), que fez da cidade a única capital não europeia de um império europeu. Escritores precisam de sustento e ócio; passaram a se empregar na vasta burocracia governamental legada pelos portugueses, assim como na imprensa que florescia à base de anúncios de casas importadoras a abastecer as demandas de uma elite pré-industrial.

A reedição de O príncipe e o sabiá e outros perfis confirma Otto Lara Resende na condição de um dos principais cronistas do período que foi o apogeu da cultura brasileira. Nascido em São João del Rei em 1922, filho de pai jornalista, dizia ter entrado nas redações “como cachorro entra na igreja: porque achei a porta aberta”. 

Sua exatidão descritiva era notável, mas há algo de elusivo, como se as figuras se esfumaçassem

Depois de estudar Direito em Belo Horizonte, mudou-se em 1945 para o Rio, onde trabalhou em todos os veículos importantes: Diário Carioca, Diário de Notícias, O Globo (tendo coberto, para os dois últimos, a Constituinte de 46), Correio da Manhã, Última Hora (onde foi crítico de cinema). Dirigiu as redações da revista Manchete e do Jornal do Brasil, e manteve, no fim dos anos 1970, um programa de entrevistas na TV Globo. O epílogo de sua vida jornalística foi o curto período em que escreveu crônicas na Folha de S.Paulo, quando atingiu o virtuosismo estilístico que o consagrou no gênero, antes de morrer em 1992.

Otto Lara é autor de uma obra de ficção, com a qual se manteve contrafeito, relutante quanto aos contos que lançou em alguns volumes, retocando até o final da vida seu único romance, O braço direito (1963) — hoje pouco lido, mas estimado entre escritores. Ele pertenceu a um famoso quarteto de literatos mineiros que se tornaram cariocas adotivos e deixaram, cada qual, obra expressiva (Paulo Mendes Campos, Hélio Pellegrino e Fernando Sabino).

Todos os autores mencionados até aqui, exceto Wallace Stevens, aparecem sob a forma de retratos memoráveis nas páginas deste O príncipe e o sabiá (título do perfil de Rubem Braga), livro organizado por Ana Miranda em 1994, enriquecido nesta reedição por posfácio de Wilson Figueiredo. Mas há também políticos e celebridades, além dos dois escritores tutelares do primeiro modernismo, Mário e Oswald de Andrade. Praticamente não existe personalidade de destaque entre os anos 1940 e 70 que Otto Lara não tivesse conhecido, quase sempre de perto, como repórter, amigo ou colega de “tarimba” (gíria para batente).

Tudo é transitório

Sua exatidão descritiva era notável. Sobre Clarice Lispector, por exemplo, escreve que “o coração obscuro da vida” lhe havia ditado um “transconhecimento que desvenda o selado silêncio das coisas”. Ao evocar a terra natal, diz que “Minas respirava ainda o ar fino e azul de seu recatado e tuberculoso horizonte”. Mesmo assim, há algo de elusivo nesses perfis, como se as figuras se esfumaçassem logo após serem delineadas com tamanha firmeza.

Existe aí um sentimento de que tudo é transitório e aberto à ambiguidade; o próprio decorrer do tempo tem uma dimensão tão-somente subjetiva, a vida passa em brancas nuvens. Os personagens de Otto são contraditórios até chegar ao paroxismo de Adolfo Bloch, o patriarca da Manchete, que se resume ao diagrama de seus paradoxos — cruel e plangente, ladino e iludível, cativante e odioso, numa oscilação por sua vez tão frenética quanto previsível.

O perfil de Jânio Quadros é dos mais desconcertantes. Trata-se do cair de uma tarde sufocante em 1961, meses após a renúncia. Otto e outros quatro visitantes batem à porta do desenxabido apartamento da mãe do ex-presidente, na praça Roosevelt, centro de São Paulo. O próprio Jânio abre e os convida a entrar. 

Segue-se uma descrição impecável, do ponto de vista jornalístico, de tudo o que ocorre no quarto onde o anfitrião decide instalar os convidados. Mas o encontro não tem sentido, as palavras de Jânio se dispersam no vazio, Otto vai até a janela a fim de arejar a penumbra que pesa como chumbo. Como um conto misterioso, o texto termina de modo abrupto, inconclusivo, engolido pelo mesmo ponto de interrogação em que desaparecia o gesto inexplicável da renúncia.

Talvez o narrador sentisse que se aproximava dos limites da narrativa. No autorretrato que encerra o volume, o autor — ele também um redemoinho de contradições — é categórico: “Perdi a fé em mim. Perdi a fé na literatura”. Mas ali ele se define de passagem como “humorista amador”. E haverá saída literária e existencial mais carioca que o humor? 

Otto Lara Resende era conhecido como conversador irresistível, de arrancar saraivadas de riso. Seu melhor retrato no gênero talvez seja o de Albert Camus com “seu olhar insone de tédio”, doente, deprimido após se obcecar com suicídio na viagem de navio que o levara ao Rio, recusando horrorizado as feijoadas e caipirinhas que os nativos lhe impingiam torrencialmente. 

Quem escreveu esse texto

Otavio Frias Filho

foi diretor de Redação da Folha, diretor editorial do Grupo Folha e membro do Conselho Fundador da revista Quatro Cinco Um.

Matéria publicada na edição impressa #8 dez.17-fev.18 em junho de 2018.