Literatura,
Mil faces
Na autobiografia “Os fatos” e em romances como “Operação Shylock” e “Complô contra a América”, escritor eliminou as fronteiras entre memória e ficção
01jul2018 | Edição #13 jul.2018Sempre apontado como exemplo de ficcionista de extração autobiográfica, Philip Roth dedicou um livro ao gênero, Os fatos: a autobiografia de um romancista, publicado em 1988.
O leitor habitual de seus romances encontra ali muito a reconhecer. A assimilação judaica à pujança americana, triunfante na geração dos netos de imigrantes a ponto de reverter em sátira; a confluência entre a liberação sexual dos anos 1960 e as epifanias de um priapismo fixado em certas mulheres versadas no assunto, mas derruído, nos narradores maduros, pela longa sombra da decrepitude; uma fatalidade irônica que persegue seus heróis predestinados à catástrofe — esses temas tipicamente rothianos, como era de esperar, estão presentes.
Weequahic, Newark
Em paralelo, descortina-se um reconhecimento geográfico. Aí está um autor que levou a sério a recomendação atribuída a Tolstói de escrever sobre a própria aldeia. Muitas das histórias de Roth acontecem no bairro judeu de classe média em que o escritor passou infância e adolescência, Weequahic, em Newark (NJ), na região suburbana de Nova York, de modo que se torna um passatempo, para o leitor da autobiografia, identificar lugares e situações transplantados à ficção ou misturados com ela.
Em seguida vieram a graduação em letras numa faculdade obscura da Pensilvânia e o período em que obteve o mestrado e começou o doutorado na Universidade de Chicago, onde também passou a lecionar como professor-assistente. Não há muito de interessante — diz o próprio Roth a dada altura — na vida de um escritor, que consiste em passar quase todo o tempo preso a uma escrivaninha, lendo e escrevendo.
Foram os contos publicados em revistas literárias e logo reunidos em seu primeiro livro, Adeus, Columbus (1959), quando o autor tinha 26 anos, que provocaram uma faísca de fama, embora adversa. A desenvoltura do escritor principiante ao expor fraquezas de personagens judeus e dessacralizar uma identidade ancestral satirizando seus costumes anacrônicos alarmou líderes da comunidade, que atribuíram a Roth a pecha de judeu que odeia a própria condição.
A autobiografia culmina com as altercações entre Roth, convidado a uma mesa de debates numa universidade judaica em Nova York, e interpelantes raivosos que o crivam de perguntas hostis e continuam a assediá-lo depois de os organizadores darem por encerrado o painel. Desse episódio, da psicanálise então recém-começada e das imitações humorísticas do cotidiano judaico que fazia em jantares íntimos nasceu a explosão de O complexo de Portnoy (1969), livro que o fez famoso e é provavelmente o mais livre e divertido que escreveu.
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Até aqui ficamos sabendo da ascensão de um escritor autoconfiante, seguro de seus talentos e direitos, um tanto ingênuo em face das sucessivas mulheres “arianas”, como ele ressalta, com quem se envolve. Neste ponto, porém, a narrativa se interrompe. Como se sentisse o mesmo que nós — falta, ao relato bastante insípido, a sedução hipnótica de seus livros de ficção —, o autor o fez preceder de uma carta por ele escrita a Nathan Zuckerman, o jovem alter ego de Roth que protagoniza alguns de seus romances.
Ali, o escritor revela ter redigido o texto após um colapso nervoso associado a graves complicações que sobrevieram em decorrência de uma cirurgia. Como quem se esquece onde colocou uma chave, ele alega que precisava reconstituir seus passos anteriores — daí o esforço autobiográfico. Refere também certo “cansaço com as máscaras, com os disfarces, com as distorções e as mentiras”. Numa passagem reveladora, ele escreve que as “lembranças do passado não são lembranças de fatos, mas lembranças de como os fatos foram imaginados”. Teriam rendido um livro bom o bastante? Deveriam ser publicadas? É o que Roth “pergunta” a Zuckerman.
Criador e criatura
A vigorosa resposta do personagem, que ocupa as últimas trinta páginas de um volume de pouco mais de duzentas, é o melhor momento do livro. Zuckerman é categórico ao opinar que o manuscrito não deve ser publicado (e, no entanto, ele o foi…). “Julgamos o autor de um romance”, diz o alter ego, “pela qualidade que demonstra ao contar uma história, (…) mas julgamos moralmente o autor de uma autobiografia, cuja motivação é sobretudo ética e não estética”.
O autorretrato de Roth, diz sua criatura, vem edulcorado pelo bom-mocismo que o autor pretende projetar sobre a própria imagem e sobre um passado mais conflitivo do que ele permite entrever. Aliás, continua Zuckerman, parece haver algo crucial omitido no romance de sua infância. E sua verdadeira autobiografia, se existe uma, é O complexo de Portnoy. A resposta termina em registro cômico, como se o personagem estivesse empenhado em sobreviver quando diz ao criador que apenas ele, Zuckerman, é “seu instrumento para uma autoevisceração realmente impiedosa, seu instrumento para uma genuína autoconfrontação”.
Não deveríamos tomar o que um escritor nos diz, entretanto, pelo valor de face, sobretudo quando se trata de um notório manipulador de identidades. Em Operação Shylock — uma confissão (1993), por exemplo, Philip Roth descobre, numa viagem a Israel, um homônimo com quem nunca consegue travar contato e que lidera uma seita de adeptos da doutrina do “diasporismo”, favorável à dissolução do Estado sionista e a uma nova dispersão dos judeus pelo mundo.
Em Complô contra a América (2004), o herói da aviação Charles Lindbergh, que de fato era simpatizante da Alemanha nazista, é ungido candidato pelo Partido Republicano e se torna presidente dos Estados Unidos em 1940, derrotando o incumbente Franklin Roosevelt. Este livro se confunde com uma autobiografia em que, como numa fratura do espaço-tempo própria de algum conto fantástico de Stephen King, subitamente os fatos históricos adotassem outro curso, apto a remodelar a vida do escritor quando garoto e de toda sua família. Como estabelecer, nesse ambiente, limites entre realidade e ficção?
Existe um motivo muito concreto pelo qual a maioria dos escritores, se não todos, por menos que o admitam, é essencialmente autobiográfica. Toda ficção é uma fatia extraída do redemoinho do real que o simplifica, corrige e torna de alguma maneira exemplar. Para que essa fatia possa ostentar a verossimilhança necessária, para que seja capaz de nos persuadir, superando nossa crítica, é preciso que venha embebida numa profusão de detalhes genuínos que a imaginação falha em alcançar e que somente a memória pode suprir.
A fabulação literária é menos produto de uma fantasia abstrata, cerebral, do que do trabalho do escritor para dissimular a matriz autobiográfica daquilo que escreve. Não se trata de criar uma realidade imaginária, mas de deformar — mediante os recursos do exagero, da paródia e da ironia — um substrato real, retido pela memória, até que se torne irreconhecível. Philip Roth talvez seja o romancista em que essa manobra é ao mesmo tempo mais elaborada e mais explícita.
Matéria publicada na edição impressa #13 jul.2018 em junho de 2018.
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