Literatura,

Sobre formigas e macacos

Gustavo Pacheco mostra domínio da narrativa curta em livro de estreia

20nov2018 | Edição #12 jun.2018

Alguns humanos, estreia do carioca Gustavo Pacheco, encerra onze contos carregados de ironia e humor negro, contendo o que se poderia chamar de pequenos estudos em primatologia. A coleção de hominídeos que servem de mote às histórias é variada: Ota, pigmeu congolense exposto ao lado de orangotangos num zoológico em Nova York, em 1906; Kuek, índio botocudo transladado para a Europa por um príncipe renano, na primeira metade do século 19; Julia Pastrana, cantora mexicana, morta em 1860, de corpo peludo e feições simiescas, e seu empresário nada apologético. 

Essas figuras históricas, que parecem pinçadas pelo autor numa enciclopédia de existências anômalas, juntam-se a primatas contemporâneos mais triviais: escritores brasileiros às voltas com veleidades literárias, um músico imaturo, sustentado pela namorada, um artista plástico embusteiro. Como se estivéssemos em visita a um museu de história natural, o autor parece dizer: de tudo isso é feita a humanidade. 

Transitando por uma variedade de espaços e épocas, Pacheco adapta-se bem ao desenraizamento geográfico, que acompanha o desapego ao realismo psicológico. Sob alguma influência de Borges, no espírito lúdico e no sentido paródico, se não são propriamente filosóficos, boa parte dos contos interessam-se, sobretudo, por ideias, ainda que sempre insinuadas por meio de humanos peculiares. 

Em algumas peças, há o recurso a eventos verídicos — porém tão esdrúxulos que beiram o inverossímil, corroborando a colocação de W. G. Sebald, citado pelo escritor que anota e parasita a história de superação de sua empregada paraguaia, uma Macabéa mais desenvolta, no conto “As formigas”: “Nada do que você inventar será tão horripilante quanto as coisas que as pessoas contarem a você”. 

Desse modo, o material dos textos “baseados em fatos reais” serve, sobretudo, à imaginação de Pacheco, que insere elementos lúdicos ou fantásticos com muita naturalidade, como em “Deus não vai se incomodar”, ou ao final do conto de abertura, em que o orangotango Dohong, prestes a morrer, experimenta uma curiosa clarividência e, “atraído por um pedaço de futuro que flutua em direção à sua consciência”, enxerga seu ex-companheiro de jaula, o pigmeu congolense, suicidando-se de tristeza e alienação, dez anos à frente.

Desconfortos culturais

O cosmopolitismo — que nos leva da Lapa carioca à China — e o eventual apelo à fantasia não implicam, contudo, alheamento ao presente histórico, pelo contrário: os contos de Pacheco atiçam argutamente polêmicas e desconfortos culturais da nossa época. Nesse sentido, um dos textos mais representativos da coletânea é “História natural”. Em tom de reportagem, o conto explora uma controvérsia em torno das maquetes ou “dioramas” que representam povos africanos, asiáticos e nativo-americanos em museus de história natural dos Estados Unidos. 

Pacheco diverte-se explorando debilidades de espécimes do habitat artístico, como escritores

O antropólogo Patrick Taylor sintetiza a questão: “Por que há dioramas de pigmeus mbuti, mas não dos franceses e dos alemães ou, por falar nisso, dos americanos?”. Partidários dos dioramas rebatem: “O museu é um artefato cultural como outro qualquer e, como todo artefato cultural, tem o direito de ser preservado”. O apresentador de TV David Letterman sugere uma solução inusitada, que leva a um desfecho sugestivamente macabro — nada incomum, aliás, em Alguns humanos

O distanciamento com que o repórter de “História natural” trata o tema do revisionismo histórico representa bem o método irônico adotado pelo narrador de outros contos da coletânea, que visitam outras “relíquias de um passado incômodo”, sempre a partir de pontos de vista inusitados, seja a história do menino africano Zakaly, que encontramos em alto mar, num navio negreiro, aterrorizado pelas lendas sobre homens brancos canibais, seja em “Kuek”, a propósito do índio botocudo na corte europeia, ou, sobretudo, no supracitado “Dohong” e seu pigmeu enjaulado. Com ecos de “A menor mulher do mundo”, conto de Clarice Lispector, parte do efeito desconcertante deriva do contraste entre o desenvolvimento burlesco e o desfecho feroz e amargo, expediente que se repete em outras peças.

Além do material ofertado pelo passado etnocêntrico ocidental, Pacheco diverte-se explorando debilidades de espécimes contemporâneos, geralmente de habitat artístico, como os escritores envolvidos num triângulo amoroso-literário em “Alguns primatas” e “Alguns humanos”, engraçados exercícios de metalinguagem, e na sátira ao mundo das artes, em “A mulher mais feia do mundo” (que, envolvendo uma performance desastrosa, lembra  o filme The Square — A arte da discórdia, do sueco Ruben Östlund).

Embora os enredos de Alguns humanos prezem pelo ecletismo, a leitura imprime uma clara sensação de unidade, tanto pela ubiquidade do tratamento irônico quanto pela recorrência de certos motivos, como o jogo com o evolucionismo naturalista, que se insinua aqui e ali. Sugere-se não apenas nossa contiguidade com os primos primatas — Dohong, o orangotango, em certo momento, “inventa” a alavanca —, mas também com as formigas, divididas entre rainhas e operárias, em “As formigas”, e o axolote mexicano, espécie de salamandra que, num processo de neotenia, preserva “características típicas de sua forma jovem ou larvar”, tal como o músico de 37 anos, eterno adolescente, no conto que fecha a coletânea.  

A edição da Tinta da China é caprichada, exibindo na arte da capa uma simpática ilustração do axolote. Já o anúncio, na contracapa, proclamando “a estreia literária de um grande escritor”, se dispensável, pelo menos não mente: Alguns humanos é um livro de um autor maduro que, nascido em 1972, não teve pressa em publicar, e surge agora em plena posse de seu ofício.

Quem escreveu esse texto

Odorico Leal

É doutor em literatura brasileira pela USP.

Matéria publicada na edição impressa #12 jun.2018 em junho de 2018.