Literatura japonesa,

Sublevação em Shanghai

Expoente do modernismo literário japonês narra cenas de amor e revolução na vaporosa metrópole nos anos 20

01out2021 | Edição #50

Antes de ascender à vanguarda das metrópoles do século 21, a última encarnação de Shanghai como palco global remonta aos anos 20 e 30, quando era conhecida como a Paris da Ásia — título aparentemente proveitoso, mas que ocultava espoliação e violência. Shanghai, então, era centro cosmopolita, em parte por sua vocação portuária, mas também por imposição ocidental: em seu território destacavam-se a Concessão Francesa e a Concessão Internacional, onde britânicos e americanos gozavam de privilégios extraterritoriais. A Concessão Internacional era, por um lado, entreposto do incansável colonialismo europeu; por outro, refúgio de párias de variados destinos, de nobres russos destronados e perseguidos pelos bolcheviques a cidadãos chineses em fuga de senhores da guerra. A Shanghai da Concessão Internacional é, naquele momento, um pouco Casablanca: comandando o comércio e o fluxo de capitais, abundam empresários americanos, britânicos, alemães, franceses — e também japoneses. À noite, essas figuras saem às ruas: vão aos cafés, aos salões de dança, aos banhos turcos, perambulam entre artistas, mendigos e prostitutas. Ali, em meio a mil interesses comerciais e sexuais, fermentam o nacionalismo que levará a Chiang Kai-shek e o comunismo que levará a Mao, correntes que ora se aliam, ora se digladiam, preparando uma série de “incidentes” de sublevação popular.

O primeiro desses incidentes — a conflagração, em 30 de maio de 1925, de operários chineses, instigados por comunistas, contra as condições de trabalho nas fábricas japonesas — é o pano de fundo para Shanghai, de Riichi Yokomitsu (1898-1947), creditado, ao lado de Yasunari Kawabata, como introdutor do modernismo literário no Japão, na década de 20. Seu companheiro de vanguarda receberia o Nobel em 1968; Yokomitsu não obteve o mesmo destaque, morrendo bem antes. Kawabata já está bastante publicado no Brasil; Yokomitsu é praticamente desconhecido, daí o mérito na iniciativa da Aetia Editorial.

A novela, de clima algo noir, publicada em série entre 1928 e 1931, trata de expatriados japoneses trabalhando, embriagando-se, amando e perdendo-se em meio ao caos de uma Shanghai em tensão revolucionária. O centro de gravidade da trama é Sanki, de “semblante sagaz e aparência que remetia a heróis da antiguidade chinesa”. Do lado masculino das dramatis personae, ele é a reserva moral da história, apelidado de Dom Quixote. Não por acaso vive em perpétua crise, perseguido por impulsos suicidas, alimentados por nostalgias e pelo asco à corrupção que o circunda, inclusive no banco do qual é demitido por insolência.

A novela fisga pela narrativa que se instala em algum lugar entre a sátira e o drama onírico

Entre os três personagens masculinos de maior destaque, nota-se uma gradação: Sanki, como Dom Quixote (mas também Don Juan — outro apelido que lhe dão —, para quem converge o amor das três figuras femininas de maior protagonismo); Koya, seu amigo desde a escola primária, agora esforçado representante de uma madeireira de Cingapura, uma figura média, de orientação comercial, mas, a princípio, não absolutamente degradada; por fim, com pouco menos relevo, Yamagushi, ex-arquiteto que, apesar de nobres e genuínas inclinações pan-asiatistas, representa o estágio final de um requinte que esconde a mais tétrica barbárie: trabalha agora com a venda de ossos humanos, recolhendo cadáveres “preparados” no porão de casa (a cena em que Koya desce aos infernos do porão de Yamagushi, na parte final do livro, é das mais repulsivas e brilhantes da novela). Um trecho de diálogo entre Koya e Yamagushi no salão de dança da musa de Koya, a dançarina Mikayo, ilustra bem a mescla — saborosa — de boemia, cinismo desbragado e humor sombrio que reina na noite cosmopolita de Shanghai, tal como retratada por Yokomitsu:

— Fico admirado que você não veja esqueletos vendo as pessoas dançarem — disse Kōya, erguendo as sobrancelhas.
— Está ficando difícil ultimamente. O porão da minha casa está cheio de esqueletos, e quando vejo gente viva, a primeira coisa que vejo são as costelas. Meu caro, você começa a ficar louco ao pensar que as pessoas todas são formadas por estruturas, como as portas shoji.

A primeira parte do livro é dedicada às perambulações de Sanki e Koya por Shanghai, por banhos turcos e salões de dança, ambos mais ou menos perdidos, presas do desejo: Koya só tem olhos para a dançarina Mikayo — o que não o impede de violar a doce conterrânea Osugi, que por obra sua se entrega à prostituição; já a bela Mikayo se divide convictamente entre um séquito de pretendentes das mais variadas nacionalidades. (“Eu não sirvo para isso. Não consigo me imaginar vivendo ao lado de um único homem. Eu vejo todos os homens como a mesma coisa”, diz ao insistente Koya.) Osugi, como Mikayo e outras — sobretudo a heroína comunista Fang Qiu-lan —, atravessa o caminho de Sanki, que hesita e se confunde entre desejos: “Quem será esse fantasma que vai e vem de dentro do meu coração? Osugi, Kyōko, Oryū, Olga?”.

Angústia

No fundo, a angústia de Sanki relaciona-se ao fato de que também ele está sendo incorporado à vaporosa Shanghai, com suas lâmpadas a gás, seus píeres melancólicos, suas vielas e mercados repletos de cabeças de porcos, onde os infelizes de todas as pátrias compõem “uma quimera disforme de gente desprovida de personalidade, formando um país independente e sem igual no resto do mundo”. A incessante perambulação amorosa de Sanki parece, assim, o drama que substitui a busca por uma identidade perdida, o desejado enraizamento, que Sanki não consegue sublimar pelo idealismo francamente político — que irrompe, no terço final do livro, por meio da sublevação dos operários chineses, deflagrando o caos na cidade. Aqui a narrativa sofre uma severa guinada política e sobram páginas com descrições de intrigas ideológicas, com trechos interessantes e até bastante pertinentes aos tempos atuais, considerando as renovadas tensões geopolíticas entre potências ocidentais e a Ásia, notadamente a China.

De desfecho elegantemente aberto, invertendo pares românticos destroçados, Shanghai fisga pelo ritmo ágil, pela imagística surreal ominosa — de influência modernista — e, acima de tudo, pelo tom híbrido da narrativa, que se instala em algum lugar entre a sátira e o drama onírico, em que mesmo seus temas mais graves — a perda da inocência, o anseio por identidade, os conflitos étnicos, o desespero em meio à fome — sofrem certa ressalva de comicidade sombria, como se por obra do ar tóxico e inebriante de Shanghai. Um registro que teria talvez, nos dias de hoje, um improvável herdeiro nas tramas políticas e nos personagens um tanto esquemáticos de Michel Houellebecq.

Este texto foi realizado com o apoio da Japan House São Paulo.

Editoria com apoio Japan House São Paulo

Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.

Quem escreveu esse texto

Odorico Leal

É doutor em literatura brasileira pela USP.

Matéria publicada na edição impressa #50 em agosto de 2021.