Literatura,

Pesadelos de consumo

Coletânea de contos examina um mundo que exauriu os corpos e as almas em nome de uma força impiedosa que insiste em ressuscitar

19abr2023 | Edição #69

O Rei do Gelo, protagonista de um dos contos de Friday Black, vive o auge de seus dias quando senta por quinze minutos no banheiro do shopping onde trabalha. “De tempos em tempos”, diz, “dou a descarga para ouvir a água correndo”. Mestre na arte de vender roupas de inverno, o Rei do Gelo é o duplo de um vendedor ilustre e anônimo que construiu sua reputação durante as black fridays, eventos de queima de estoque que causam, todos os anos, centenas de mortes no Shopping Destaque. O funcionário sem nome é um dos poucos que não se abala com o sangue jorrado nos corredores. Na primeira ocasião foi mordido por um cliente e aprendeu, assim, “a falar Black Friday”. Ali, passou a não sentir mais medo, nem coisa alguma. Black friday, sugere, é um idioma simples, afeito a sutilezas: um balbucio espumoso que descreve as coisas ao redor como “azul!”, “filho!”, “PoleFace®!”. Cabe a pessoas como ele, sensíveis aos apelos dos consumidores, completar suas lacunas.

Assim como boa parte dos personagens criados pelo jovem norte-americano Nana Kwame Adjei-Brenyah, o Rei do Gelo e seu semelhante têm como conflito essencial os próprios processos de desumanização. Eles não ligam para as pilhas de cadáveres que são transferidas para uma sala especial e se empenham em ser bons funcionários. Juntam-se a eles figuras como Zay, o empregado negro de um parque de realidade virtual que é forçado a morrer muitas vezes ao dia para que os visitantes brancos sublimem suas pulsões de violência, e Emmanuel, um jovem afro-americano que decide caçar brancos nas ruas depois que o assassino de cinco crianças negras é inocentado pelo sistema judiciário dos Estados Unidos, entre outros quase humanos que vagam por aí.

O horror de Adjei-Brenyah parte do exagero de cenas cotidianas, um horror que soa plausível e familiar

Em Friday Black — título que inverte a expressão comercial e transforma o adjetivo “black” em substantivo — não há espaço para o silêncio, menos ainda para a contemplação. Todos os personagens falam, e muito, como se estivessem prestes a testemunhar o fim do mundo. E quase sempre estão.

Depois de ter seus corpos exauridos em nome de uma força estranha e impiedosa que permeia o universo apocalíptico dos contos, eles precisam articular as palavras o tempo todo para compreender alguma coisa sobre si mesmos antes de partirem. E muitos percebem que a força estranha quer mais; quer também os seus espíritos, suas almas, desejo que se consuma com Superbalofo, uma vítima de bullying que atira em uma garota inocente e se transforma em um espírito obsessor; e com Jackie Gunner e Jamie Lou, dois fetos que acabaram de ser abortados e querem, antes de morrer, acertar as contas com os pais.

Nas histórias trágicas de Adjei-Brenyah, a morte não elimina o sofrimento. A exploração do outro e de si mesmo continua até o próximo fim do mundo.

Horror e arrebatamento

Adjei-Brenyah flerta o tempo todo com o horror, mas não um horror estetizado para a tv nem corpóreo como o cinema de Cronenberg. O horror de Adjei-Brenyah parte do exagero de cenas cotidianas, um horror que soa plausível e familiar. É a partir de imagens absurdas e hiperbólicas que ele busca tratar de temas urgentes como a segregação racial, a violência como moeda de troca, o consumismo identitário, a alienação da própria subjetividade. Tudo nos contos é excessivo como uma embalagem de cinco litros de milk-shake ou o patrimônio de Jeff Bezos. Mas é por meio dos exageros que algumas verdades transbordam com fúria.

O autor preza por uma prosa ágil, de humor soturno e asfixiante, que remete às “comédias da cultura” de George Saunders, um de seus mentores — como seu professor, Adjei-Brenyah adota nomes pynchonianos para eventos fictícios, como “a Grande Guerra Rapidinha”, e pinça recursos da ficção científica para usá-los em chave irônica. Seu gosto, porém, vai na contramão das convenções literárias que relegam a importância dos enredos. Adjei-Brenyah tece tramas com muitas ações e reviravoltas, o que pode ser associado à sua paixão de adolescência por livros de fantasia e mangás, como revelou ao New York Times. Outra influência estética de fora da literatura que é visível em seus contos de estreia é o rap: a exemplo de artistas como Kendrick Lamar e mf Doom, Adjei-Brenyah condensa uma trilha veloz e pungente com múltiplas vozes e personagens que nos prendem e não oferecem saída, apenas arrebatamento.

Não por coincidência, o autor, que também é um rapper esporádico e lançou uma faixa ácida chamada “Nabokov” em 2021, escolheu uma frase de Lamar para a epígrafe: “Tudo o que você imagina você tem”.

Quando publicou Friday Black nos Estados Unidos, em 2018, ele tinha 28 anos. Ao contrário do que se espera dos escritores de sua idade, as histórias não seguiam a tendência das narrativas de redes sociais, contadas, quase sempre, na primeira pessoa. Vários de seus contos, como “Os cinco de Finkelstein”, um dos melhores de todo o volume, são narrados em discurso indireto livre com maestria.

Adjei-Brenyah também passa longe da autoficção. Seus dados autobiográficos, como a ascendência ganesa e os empregos em lojas de departamentos, estão diluídos em figuras complexas ao longo do livro. Bem construídos, os dramas íntimos dos personagens têm o efeito de multiplicar as perguntas trazidas pelos nós sociais. “Nova Era”, conto sobre um mundo que aboliu, com remédios, as emoções humanas em nome de uma sociedade racionalíssima, é um exemplo: a trama, um tanto comum para os padrões de séries de tv distópicas, ganha força ao mostrar a angústia de um garoto sensível, um dos únicos da turma a não ter suas características escolhidas geneticamente, que tenta não se abalar com a miséria que o cerca. É o seu mundo interno, descrito por meio de ações e diálogos com outros personagens geneticamente perfeitos, que faz dessa ficção tão poderosa.

Embora os contos transitem por mundos fantasiosos, não há espaço para soluções mágicas. Não há possibilidade de um final, feliz ou não, em meio a tantos impasses. Mas há, porém, uma beleza melancólica implícita na prosa de Adjei-Brenyah: a celebração da imaginação. Como diz a narradora de “Além do Flash”, o último conto do livro: “Não fosse o fim do mundo, todo esse vazio seria lindo”. Adjei-Brenyah faz lembrar que é mais fácil elaborar muitos fins do mundo do que imaginar o fim dessa força estranha e impiedosa que paira sobre nós. Mas precisamos imaginar.

Quem escreveu esse texto

Guilherme Pavarin

Poeta e jornalista, é autor de O maquinário fantasma (Urutau).

Matéria publicada na edição impressa #69 em abril de 2023.