Literatura Negra,

Toda periferia é um centro

Estreia de Jorge Augusto na poesia apresenta memória afetiva do subúrbio de Salvador, formada sobretudo por corpos negros

01nov2023 | Edição #75

Uma das epígrafes de O mapa de casa, primeiro livro de poemas de Jorge Augusto (mais precisamente uma plaquete), que conta com ilustrações de Jeferson Bispo, diz:

todo lugar é um
“lugar de memória”

e
toda memória
é o mapa
de um lugar
J. A.


O mapa da casa, primeiro livro de poemas de Jorge Augusto

Ler este livro é uma incursão pela memória do autor, um dos convidados da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), a respeito do lugar em que viveu em Salvador, mais especificamente na rua cadê o homi ou rua nossa senhora das graças, no bairro da Liberdade. Lugar que é a instância de suas vivências e onde é produzida a existência social de seus moradores, uma periferia formada sobretudo por corpos negros.

No Museu do Ceará, em Fortaleza, tem uma sala de visitação repleta de placas com os antigos nomes das ruas da cidade ao lado de um painel enorme traçando o ontem e o hoje. Eram ruas do sol, das boninas, da esperança… quando vi esses nomes me lembrei tristemente de Manuel Bandeira e seu “Evocação do Recife”:

Rua da União…
Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame do dr. Fulano de Tal).

Parece ser algo recorrente nas grandes cidades, o movimento de abandonar a natureza e se abrir à politicagem. Movimento transgredido pelas periferias, como nos mostra Jorge Augusto:

rua lima e silva, transversal a pero vaz
avenida padre antônio vieira, paralela
a santa mônica: invasores, generais e santas
grafados nas placas, muros e postes

[…]
mas a gente reinventava os nomes
nossa senhora, virou cadê o homi
rua lima e silva ficou liberdade

à revelia das placas se batizava
outra cidade, uma memória rebelde
contra a herança covarde, como se

cada rua, esquina, travessa ou viela
iniciada fosse reintegração de posse
luta contra o esquecimento e a morte

Esses espaços onde a memória se fixa são tornados lugares muito mais apurados em afeto e lembranças, resvalando na fala, no poema. Essa memória atravessada pela cidade desde tempos passados e que estão cristalizados na paisagem é reapropriada e fundida à própria memória do poeta. Com isso, se constitui um lugar poético e profícuo em afeto, pois alicerça o lugar material e simbólico expresso e revelado da memória coletiva, sendo ainda um elemento importante da identidade do poeta e de seu espaço:

rua cadê os homi

todos os dias os mesmos dramas
urgências de saúde, um segredo
novo que ninguém ignorava, uma
briga de casal, ou novo enterro
[…]
ríamos e nossa gargalhada ameaçava
o mundo, como subir escadas rebolando
o pagodão, insubmissos vivos se tínhamos
que morrer não nos encontrariam rendidos

Ao fazer poesia de sua rua e sua cidade, autor produz uma cartografia das periferias brasileiras

Ao fazer poesia de sua rua, seu bairro e sua cidade, Jorge Augusto produz uma cartografia do Jangurussu em Fortaleza, do Encanta Moça no Recife, do Vale do Gavião em Teresina, do Melgaço no Pará, assim como da maioria das periferias brasileiras, quiçá até do mundo. Em entrevista ao podcast 451 MHz, ele comentou que “a casa para a população negra periférica é a rua, onde a população negra criou seus laços afetivos e de resistência”.

Da mesma maneira que, mesmo nunca tendo pisado na Liberdade, o bairro soteropolitano se torna familiar para quem já pisou e viveu num bairro de periferia; são essas mesmas gentes nesses lugares: Jeu, Peu, Jocevaldo, Guto, Fel, Babão, Charéu, seu Manoel e seu bar, e todos os meninos e benzedeiras e tambores. No fim, não é só “em todas as quebradas/ da minha pobre cidade/ os personagens se repetem”, mas também na minha quebrada; é tudo a mermazária!

Quebrada que se meneia também na fala de sua gente que tem uma linguagem única: cada seu Manoel com seu acento muito específico e sua história singular. E, mais do que representar acentos e falas, o poeta inventa jeitos de ver o que memoria (do verbo “memoriar”, de quem cria com a memória), inventa sua própria linguagem.

Atualizando David Harvey em A justiça social e a cidade (tradução de Armando Corrêa da Silva, Hucitec, 1980), que constata que o comportamento social da população está relacionado ao território e à forma espacial que a cidade assume, Jorge Augusto sabe que toda periferia é um centro e é produtora de tudo: arte, cultura, educação; hortas comunitárias, economias solidárias.

Contranarrativa

Essa poesia assume uma contranarrativa, não apenas dos programas policiais sensacionalistas e narrativas prontas e eugenistas que colocam “uma rua contra outra/ tipo jihad al-qaeda”, como também dessa perspectiva contemporânea romantizadora.

Jorge Augusto é inteirado: além de poeta, é editor da Organismo, revista de literatura contemporânea, da editora Segundo Selo e professor na Universidade Estadual da Bahia e no Instituto Federal da Bahia. Pesquisa, com base em Lima Barreto, colonialidade na literatura negra brasileira a partir de um modernismo negro que não coincide com o modernismo de 1922.

Jorge Augusto, homem negro e periférico, é um poeta de seu tempo e sua poesia é uma encruza entre memória e pesquisa. Ao traçar criticamente o passado em poesia, faz um arremesso lá no futuro, é uma ponta de lança. E, embora as ruas tenham sido sujas por mãos coloniais, dessa mirada negra não vejo nada pessimista. Existimos, resistimos e criamos, de domingo a domingo, a nossa Liberdade.

Quem escreveu esse texto

Nina Rizzi

Historiadora e poeta, escreveu Nina: Uma história de Nina Simone (Pequena Zahar, 2022) e Elza: A voz do milênio (VR Editora, 2023).

Matéria publicada na edição impressa #75 em outubro de 2023.