Literatura infantojuvenil,

Multicolorido

Livro de historiadora trata de branquitude e formas de ver o mundo

26out2022 | Edição #63

Imagine uma criança saudável, curiosa, questionadora, que gosta de super-heróis, mitologia, estudar história. Agora imagine que essa criança tem seus direitos garantidos e acesso a uma escola com excelentes estrutura e equipe docente. Não é difícil imaginar que os mitos de que gosta são europeus, que a história que conhece é de reis e estadistas brancos e que os super-heróis que gostaria de ser são brancos.

Se nome é destino, o personagem Alvo é um herdeiro natural do pacto narcísico do privilégio de pessoas brancas, dos “benefícios concretos e simbólicos da escravidão”. Nem por isso nosso pequeno protagonista sente vergonha ou culpa. Nem deveria; afinal, além de criança, ele é daltônico racial, alguém que nasceu e cresceu em um país igualmente daltônico e que defende privilégios da branquitude, tendo como referência, régua e padrão o universo branco e, portanto, “vê tudo branco, até Deus”.


Primeiro livro infantojuvenil de Lilia Moritz Schwarcz, Óculos de cor não tem medo de culpas

Primeiro livro infantojuvenil de Lilia Moritz Schwarcz, Óculos de cor não tem medo de culpas, ainda que se repita reiterando e reiterando que Alvo via tudo branco — talvez esse artifício, além de diluir a cegueira racial de pessoas brancas, funcione como uma contranarrativa diante do silenciamento sistemático do povo negro na história e do apagamento de sua memória. Apesar disso, a família da personagem Ebony conhece bem suas origens (o que, além de me alegrar, deixa uma pontinha de tristeza, porque eu mesma nunca saberei), e a professora Rúbia conta sobre o heroísmo-protagonismo negro ao longo da história. Escrito a partir da perspectiva de um garoto branco, como a autora, a obra discute justamente a branquitude tão pouco racializada (sim, branco é raça!) na busca por não naturalizar lugares de privilégio, desigualdades e racismo.

Mais do que um conhecimento do “outro”, a jornada de Alvo é um processo de autoconhecimento que o tira de uma cegueira e o humaniza, conta Lilia Moritz Schwarcz à Quatro Cinco Um. Como estudou em escolas públicas, a autora esteve em contato com pessoas de diferentes raças e classes e decidiu, mais do que ver (biologicamente), enxergar (culturalmente, politicamente), assumindo um papel de aliada na luta antirracista — afinal “a prática é o critério da verdade”, diz, citando a Coalizão Negra por Direitos.


Ilustrações de Suzane Lopes [Divulgação]

A transformação de Alvo começa quando sua escola estabelece uma política de cotas para crianças negras vindas de escolas públicas — política pensada entre direção, corpo docente e famílias —, e ele se aproxima de Ebony, aluna nova com quem faz um trabalho: cada dupla de veterano-novato deve fazer uma espécie de excursão no bairro e na casa um do outro, pesquisando a origem das famílias e como vivem.

A “utopia afetiva”, sobre a qual Lilia Schwarcz fala no prefácio, é uma experiência mais de alteridade e encontro do que de choque de culturas e, embora pareça quase impossível de ocorrer na vida fora do livro, às vezes acontece. Recordo uma vez quando Valton, garoto de onze anos, primo de um amigo de minha filha e morador da chamada zona nobre da cidade, foi visitar o Sarau da b1, evento que acontece em uma praça do Jangurussu, periferia de Fortaleza, e, ao ver e ouvir a profusão de arte e alegria, perguntou: “Nina, o Jangurussu é mesmo perigoso? Desculpa, sei que essa pergunta é preconceituosa, só porque é uma periferia, mas é que a gente nunca fica sabendo dessas coisas bonitas que acontecem aqui”.

Além de criança, Alvo é daltônico racial, alguém que nasceu e cresceu num país igualmente daltônico

Assim como Valton, Alvo conhecia apenas um território da cidade e as narrativas criminalizantes sobre outros espaços. Conhecia apenas uma parte da história, como a maioria de nós — até quem, como eu, há vinte anos entrou numa faculdade de história em que não havia disciplinas sobre história indígena, da África e da Ásia. Toda a narrativa, mesmo sobre a escravidão, era lida pela perspectiva dos opressores — não vencedores, porque, numa história de opressão, nunca há vencedores. Além disso, estamos aqui hoje para narrar por nós mesmos.

É o que faz Ebony, que conta sua história, sente orgulho de ser quem é, de onde mora, de sua origem e herança cultural. E, ainda que colabore com Alvo em sua jornada racial, não carrega o fardo de ter que ensiná-lo. É na interação que o garoto faz suas descobertas e passa a enxergar o mundo além dos vários portões de seu condomínio e dos “‘pactos de territorialidade’ que pressupõem uma separação física de territórios e espaços”, conta Schwarcz. Enxerga que guardas, funcionários e babás são em sua maioria pessoas negras; que até mesmo sua professora “não é tão branca assim” (e, por ter a pele mais clara, tem agência); que pobreza e escravidão são coisas distintas; que não vivemos em uma democracia racial.

Vários tons

É nas interações e nas brincadeiras que as crianças criam histórias reveladoras de como enxergam o mundo e de como se relacionam — não à toa, os dois colegas criam óculos de papel-celofane, colocando em evidência como os colegas veem o mundo de uma única cor e, então, a partir desse brinquedo, podem enxergar como o mundo e as pessoas têm diversos tons, são “coloridas”.

“As relações raciais no Brasil foram sempre tratadas como um problema exclusivo dos negros”, diz Schwarcz. Falar de racismo pode não ser agradável, mas esse não é um problema apenas de pessoas negras, é de todos. Assim como Alvo, é preciso reconhecer a diversidade, o lugar que ocupamos e, se for uma pessoa branca, oportunizar o protagonismo de pessoas negras e se aliar à luta antirracista, atuando para desmantelar o racismo e diminuir as desigualdades. Só assim poderemos viver num país mais justo.

É desde a infância, quando preconceitos e racismo são inexistentes, que devemos começar o trabalho antirracista. “Num país tão desigual e cego, o letramento racial deve ser feito o quanto antes”, diz a autora. E nem é preciso ir longe para ver as crianças enxergando: elas estão prontas para essa conversa, e para a ação, muito mais que os adultos!

Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Nina Rizzi

Historiadora e poeta, escreveu Nina: Uma história de Nina Simone (Pequena Zahar, 2022) e Elza: A voz do milênio (VR Editora, 2023).

Matéria publicada na edição impressa #63 em outubro de 2022.