Literatura brasileira, Literatura Negra,

É isto um homem

Com narração sofisticada e oralidade popular, novo romance do gaúcho José Falero escancara o machismo estrutural

01nov2024 • Atualizado em: 11nov2024 | Edição #87 nov
O escritor gaúcho José Falero (Josemar Afrovulto/Divulgação)

Não espere que José Falero escreva que uma personagem esqueceu o que estava pensando. Em Vera, seu novo romance, ele o faz assim:

A maior parte dessa cadeia de pensamentos dissipou-se instantaneamente, logo após ter se formado, mas um fragmento dela, de especial importância, conservou-se, como uma bolha de sabão que se recusa a se desfazer.

Com traços que remetem à literatura brasileira do século 19 e à narrativa contemporânea do século 21, a obra transita entre estilos e dá conta do quadro coletivo sem esquivar-se do que é individual. 

Onisciente, o narrador circula entre personagens, calibrando a atenção dispensada a cada um. A protagonista é Vera, uma empregada doméstica que navega nas águas lodosas do machismo estrutural em plena Porto Alegre dos anos 90. Vera é oprimida pelo patrão, pelo porteiro do condomínio onde trabalha, pelo abandono paterno e pelo Estado.

Autor de, entre outros, Os supridores (2020) e Vila Sapo (2022), publicados pela Todavia, em Vera Falero aborda o machismo a partir de uma perspectiva masculina. Eis um homem falando sobre a opressão cometida pelos próprios homens. Aliado a descrições cruas, esse ponto de vista permite que o autor exponha a face mais mesquinha do patriarcado, aquela que aparece apenas quando os homens estão sozinhos falando das mulheres. “As passagens são pesadas. Meu medo é que as pessoas confundam com apologia. Não é, é uma reflexão sobre esses acontecimentos”, diz o autor.

Diálogos clássicos

Em Vera, Falero vai além das questões sociais — necessárias e urgentes — colocadas no enredo. Trabalha habilmente o estilo da prosa, alternando a norma culta e os registros de oralidade. Ele orquestra um fino equilíbrio entre expressões da periferia e passagens tão refinadas que, certas horas, lembram o Conselheiro Aires, de Machado de Assis.

O romance ainda lembra outro clássico, por sua ambientação. Vera mora em um casebre no beco dominado pela matriarca da família, dona Helena. Cada irmã ocupa uma construção precária no terreno na Lomba do Pinheiro, extremo leste de Porto Alegre.

É muito redutor quando falam ‘é um livro sobre a periferia’. Escrevo sobre temas que são humanos

Há um banheiro, externo, para todas as residências, e um único tanque de lavar roupas. Assim, Falero se aproxima tematicamente do naturalista Aluísio Azevedo, de O cortiço. A proximidade reside apenas na descrição e disposição espacial das famílias, em um romance repleto de personagens secundários. Em um ensaio sobre O cortiço, Falero afirma, com legitimidade, que a obra tem uma “natureza preconceituosa” que “beira a incompatibilidade” com o nosso tempo.

Talvez Falero seja capaz de se comunicar com correntes literárias tão distantes no tempo porque elas tratam de problemas não solucionados do Brasil, um país desde sempre desigual e racista. Mas Vera foge de maniqueísmos simplistas e o autor é habilidoso ao plantar cenas divertidas em meio à desgraça.

O romance termina sem complacência com o leitor. E Falero deixou armadas as estruturas para uma continuação, como conta nesta entrevista para a Quatro Cinco Um.

*

Como foi escrever Vera? Foi diferente por você já ser um autor bem mais conhecido do que quando lançou seu primeiro romance?
Gosto de escrever sobre coisas que estão borbulhando na minha cabeça. Pensar sobre masculinidades, relações de gênero, é algo que está muito presente. Mas eu tenho clareza do seguinte: não estaria presente se eu não fosse namorado da Dalva [a escritora Dalva Maria Soares]. Porque a Dalva é uma feminista foda, entendeu? Ela me leva a pensar sobre essas questões. 

Produzo de maneira muito egocêntrica. Não penso: “nossa, vou escrever isso para representar, para facilitar o acesso de certas pessoas à literatura”. Quero sempre escrever um livro que me agrade. Só isso. Estou escrevendo sobre temas importantes, masculinidade, mas não quero que as pessoas pensem que isso faz de mim uma exceção. 

Falta literatura que problematize o machismo por uma perspectiva masculina?
Evito ao máximo escrever sob uma perspectiva que eu não conheça bem. Em Vera, o foco está menos na protagonista e mais nessa entidade abstrata que é o comportamento masculino. As mulheres têm feito uma abordagem do ponto de vista mais próximo para uma mulher, enquanto vítimas dessa opressão. O que tentei fazer é olhar para essa questão do lugar de opressor. Antes, tudo que eu escrevia era de um lugar de oprimido, digamos assim. Isso facilita, porque posso apontar o dedo para todo mundo. Mas escrever de uma perspectiva que requer tentar se entender e olhar para dentro, ver os problemas que a gente tem, é muito difícil. Foi angustiante.

Ao mesmo tempo, o livro tem espaço para masculinidades fora desse padrão tóxico.
Vou te dar um mega spoiler: essa história segue e terá outros volumes. Tentei trabalhar a ideia de que não há exceção, nem o [personagem] Aroldo. No primeiro volume, esse personagem, por ser diferente, é absolutamente infeliz. Como a história prossegue [em outros volumes], à medida que essa figura insegura começa a se empoderar, a primeira providência desse sujeito é oprimir as mulheres. Ele vai se tornar violento como todas as outras figuras masculinas do romance.

Será uma trilogia?
Eu tinha pensado um romance de fôlego, com mais de mil páginas. Acontece que ia ter um monte de empecilhos para publicar. Ficaria caro para caramba, difícil de editar, difícil de vender, um monte de problemas. Então a gente dividiu em volumes, devem ser três. Acho que o primeiro tem um arco próprio, uma independência, começo, meio e fim. Mas tem alguns ganchos para os próximos.

Como trabalha a alternância entre o registro da oralidade e o formal?
Sabe easter egg? Meus textos são cheios. Acho que em quase tudo que eu escrevi tem essa frase: “No entanto, ao precipitar-se…”. Ela se repete. Eu acho isso do caralho por vários motivos. Vi isso no livro da Agatha Christie, O mistério do trem azul, acho. Li centenas de vezes pensando em como é foda essa construção. 

Sobre esse equilíbrio entre os registros, quero em algum momento escrever um romance mais oral, do jeito que as pessoas falam mesmo, inclusive com o narrador falando assim porque é uma linguagem legítima. Agora [em Vera], achei que não era a hora. Primeiro porque é difícil fazer. É bem trabalhoso. Quando eu escrevo me aproximando da oralidade da periferia de Porto Alegre, a impressão que dá é que é de qualquer jeito. Não é assim. É um trabalhão, sabe? Porque tu precisa estabelecer uma política de quando é que tu subverte a ortografia e quando não. É um problema a mais para quem está escrevendo. E um trabalho estético.

Vera tem várias crianças circulando pelo beco. Como é criar personagens crianças e adolescentes?
A Dalva faz uma leitura de mim de que sou um cara preso na infância e na adolescência. Me lembro de uma época que comecei a refletir sobre como as crianças são. Faço uma leitura meio inversa do que a maioria das pessoas parece fazer. Não acho que a criança vai adquirindo capacidade. Acho que, na medida que cresce, ela vai perdendo a capacidade de se interessar pelas coisas. Sempre fiz muito esforço para não acontecer isso comigo, tenho desespero disso. A essência das crianças é a curiosidade e a capacidade de olhar os detalhes. Acho que é por isso, inclusive, que eu assistia repetidamente às mesmas coisas sem me cansar. Não quero perder isso e acho que contribui muito para a construção de uma criança na literatura.

A Vera mora num beco. Como o ambiente interfere nas personagens?
Tem uma coisa que já entendi: os ambientes dos meus livros não são um tema. É uma visão muito redutora do que eu faço quando as pessoas falam “é um livro sobre a periferia”. Velho, não é sobre a periferia, né? Não cansam de colar em mim essa parada. Acho isso muito violento comigo.

Sou ‘escritor, negro’ e não ‘escritor negro’. É a vírgula mais bem empregada que conheço

Escrevo sobre pessoas, sobre humanidade, sobre sonhos, sobre injustiça, sobre frustração. São temas humanos. Pega um escritor de classe média. O cara escreveu sobre assuntos variados, sobre amor, depressão, viagens, qualquer coisa. Mas todos esses personagens são de classe média como ele. Ninguém nunca diria, “ah, ele está escrevendo sobre classe média”. É um pouco isso que reivindico. 

Fui criado ali, eu moro na periferia até hoje, moro no mesmo bairro, na mesma casa, na mesma rua. Agora, como isso se relaciona com os personagens, que é a tua pergunta. Se eu conseguir trabalhar bem, essa relação vai ser parecida com a relação que acontece na vida real, entendeu? Que é o que acontece quando tu enfia a maior parte da cidade lá num canto, longe do trabalho para onde elas têm que ir todos os dias. Onde falta água por vinte dias, onde não tem livraria, não tem teatro, não tem cinema.

No livro, um circo se instala na Lomba do Pinheiro, mas não é acessível porque precisa de ingresso.
Me orgulho de ter colocado isso no livro. Existem vários tipos de distância. Tem a geográfica, a financeira, a subjetiva. Para cada um, aquilo ali está afastado por um motivo. Fiquei feliz de tu ter pegado isso. Eu estava na rua [enquanto escrevia] e chegou um brother: “Ô, meu, vai ter circo”. Fiquei feliz, ele interessado no lazer, né? Mas ele queria trabalhar. “Quando eles chegarem, já vou ajudar a montar as coisas”, ele disse. Tá vendo, isso é a relação do ambiente com os personagens.

Em meio à dureza do cotidiano, tem bastante humor também.
Sou um defensor do humor. Coitada da Dalva, ela é mais séria, e sofre comigo e com as piadas que acho engraçadas. O lugar de onde tu vem deixa marcas, é o ethos do [Pierre] Bourdieu. E aí tu vê que essa é uma coisa tipicamente periférica. Não é só nas periferias de Porto Alegre. A vida é muito dura lá, muito dura mesmo. Acho que é um mecanismo de defesa, é uma questão de sobrevivência.

Você se entende como um escritor negro?
Este ano teve uma exposição sobre Oliveira Silveira em Porto Alegre chamada Poeta, Negro. Um dos curadores foi o [poeta] Ronald Augusto e tenho um palpite: deve ter sido ele o responsável por colocar essa vírgula exatamente onde está: “poeta, negro”. É a vírgula mais bem empregada de que tenho notícia. Salva não só o Oliveira, mas toda uma comunidade de artistas, poetas, músicos, escritores, pensadores, acadêmicos. Eu estou com o responsável por essa maravilhosa vírgula. Sou “escritor, negro” e não “escritor negro”. Aliás, creio que não existe “escritor negro”; o que existe é “escritor, negro”.

Quem escreveu esse texto

Paula Sperb

É jornalista e crítica literária.

Matéria publicada na edição impressa #87 nov em novembro de 2024. Com o título “É isto um homem”

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