Literatura Negra,
Assim se vive e assim se desvive
Seleção de crônicas de Ruth Guimarães mostra seu olhar aguçado sobre as relações que regem boa parte da sociedade brasileira
01nov2023 | Edição #75Ruth Guimarães (1920-2014), autora de vários livros, entre eles a recente seleção de crônicas Marinheira no mundo, foi uma persona múltipla na cena literária brasileira do século passado. Como romancista, contista, poeta, ensaísta, tradutora, folclorista, jornalista e professora articulou uma paisagem literária que ainda não mapeamos em profundidade e extensão. Ao conhecer seus pensamentos e métodos de pesquisa, nos deparamos com uma intelectual movida pela observação atenta e pela reflexão crítica no trato de alguns dos temas e personagens mais complexos da sociedade brasileira.
Marinheira no mundo, seleção de crônicas de Ruth Guimarães
As crônicas do presente volume tratam de suas viagens Brasil adentro, publicadas em sua maior parte na Folha de S. Paulo, no decorrer dos anos 60, e nos permitem rever certos argumentos acerca dessa parte da obra de Ruth Guimarães (1920-2014), nascida em Cachoeira Paulista (SP). Refutamos, de início, duas noções sobre a crônica que afetam de modo particular os seus textos: a primeira se refere à suposta simplicidade desse gênero; e a segunda diz respeito à facilidade e à ligeireza expressas quase que obrigatoriamente na elaboração desse tipo textual.
Essas noções ressaltam, de maneira válida, o vínculo íntimo entre o leitor e a crônica. Porém, não há como negar que, mesmo elogiando, essas ideias reiteram os argumentos restritivos atribuídos a esse gênero um grau menor na esfera da literatura. A ênfase no eixo “simplicidade-ligeireza” oblitera em suas crônicas, por exemplo, a apreensão de um tecido temporal que se esgarça no seu acontecimento, oferecendo-se à contemporaneidade não só como registro objetivo como também elaboração fictícia e provocadora da realidade.
Destacam-se nos textos o rigor da observação e do registro etnográfico. Atenta aos modos de vida da população, considerando suas práticas culturais e seus sistemas de valores, a autora captura em situações específicas algumas das relações que, de maneira ampla, regem boa parte da sociedade brasileira. Vislumbramos em seus textos aquilo que Maria C. da Silva (Jornal Público de Lisboa), na apresentação de Vou lá visitar pastores, de Ruy Duarte de Carvalho, chama de uma “antropologia doce” e “sem qualquer ingenuidade” irradiada de viagens, relatos e análises articuladas pelo poeta, romancista, cineasta e artista plástico angolano. Este também um sujeito múltiplo que, à maneira de Ruth Guimarães, inventa na linguagem aguçada pelo confronto de pontos de vista — uma clareira estética fundamental para o entendimento dos territórios que habitamos.
Potencial dialógico
Os relatos de Marinheira no mundo funcionam como microestudos de caso e formam um painel de longa duração, abordando problemas sociais e possíveis atitudes para confrontá-los. Ao reconhecer a importância dos sistemas de relevância construídos por diferentes sociedades, Guimarães critica a hierarquização que os olhares “desde fora” estabelecem para classificar as práticas das comunidades menos favorecidas.
Do ponto de vista dos temas abordados, a autora se vale de um lirismo agridoce para analisar as relações intrínsecas entre a vida social e a intimidade das pessoas que observa. Sob as estruturas hierarquizadas da sociedade, capta a dissonância dos eventos, ressaltando aqueles em que estão envolvidos os sujeitos relegados a segundo plano pela ordem social dominante.
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Do ponto de vista estilístico, o que parece “simples” eco da expressão oral é resultado da criação literária, ou seja, da síntese entre trabalho e talento individual da escritora. O uso de recursos estéticos — a exemplo das onomatopeias (“nãnãnã, nãnã, nãnã…”, em “Da poesia”) e das aliterações (“Assim se vive e assim se desvive. E assim se convive”, em “De casamentos e piqueniques”) — demonstra que o embate entre o sentido desejado pela autora (transparência) e os sentidos revelados pelas interpretações dos leitores (opacidade) ressalta a importância da arena da literatura.
Guimarães ressalta eventos em que estão envolvidos os sujeitos relegados a segundo plano na sociedade
Do ponto de vista da linguagem, o caráter poético das crônicas de Guimarães acentua seu potencial dialógico. Entendida como forma discursiva radical, a linguagem poética deriva de uma percepção fundante do mundo. Não fosse pela sua interferência, não criaríamos metáforas e outras ferramentas cognitivas que, se não explicam, pelo menos estabelecem mediações que nos ajudam a confrontar os desafios reais e metafísicos que nos atormentam. Diante das rupturas históricas e sociais, só mesmo a linguagem poética para exprimir as oscilações da vida íntima.
Com essa linguagem, a autora desvela o assombro que sentimos diante do barro que transforma “as ruas em amostra da era primordial” (em “Janeiro no vale”). Com o recurso interrogativo dessa linguagem, a escritora descobre na música da cidade o “desencanto muito moderno de quem em nada crê” (em “Da poesia”). Atrelada a essa constatação, Guimarães observa uma onda vaga e sufocante, traduzida num sentimento coletivo “de que a vida é, afinal, uma interinidade um tanto passageira” (em “Num banco de praça”).
Em Marinheira no mundo — assim como em suas demais obras — a autora de Água funda tensiona o olhar analítico (fruto de suas conexões com as práticas cotidianas) e a alquimia estética (resultante do emprego de técnicas literárias), ambas contribuindo para a fixação de perfis humanos e enredos ora líricos, ora dramáticos. Isso nos desloca para os territórios imaginados e construídos pela linguagem poética, ao mesmo tempo que nos ajuda a compreender as tramas da realidade. Solidária com os leitores, Ruth Guimarães afirma que será “marinheira no mundo”, embora não saiba quando. E assim, palmilhando os labirintos diários, desperta os argonautas adormecidos em nós.
Matéria publicada na edição impressa #75 em outubro de 2023.