Paulo Roberto Pires
Crítica cultural
Exclusão crônica
O Brasil dos cronistas — homens brancos que vivem de frente para o mar — é muito pequeno: não é diverso na geografia, no ponto de vista ou na raça
29out2020 | Edição #39 nov.2020A caminho de casa, o cronista para num bar. “Na realidade estou adiando o momento de escrever”, confidencia ele, íntimo do leitor. “Gostaria de estar inspirado”, lamenta-se, numa das habituais e charmosas digressões de um gênero que ele mesmo define, linhas depois, como “perseguição do acidental”. Pensa no Manuel Bandeira de “O último poema” e, resignado, entrega os pontos: “Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica”.
“A última crônica” saiu na Manchete em janeiro de 1963. Criada dez anos antes para concorrer com a Cruzeiro, a revista misturava imagens exuberantes, pitadas de sensacionalismo e, ingrediente indispensável à época, um respeitável time de cronistas. Fernando Sabino, nosso torturado autor, era parte de um elenco que incluía ainda Rubem Braga, Paulo Mendes Campos e Henrique Pongetti. E, naquele dia sem inspiração, deixou que seu olhar pousasse realmente fora do que era familiar a ele e seus companheiros de ofício: “Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se”, escreve, encontrando seu “assunto” numa mesa em que também está “uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre”.
A família dos “três seres esquivos” está desconfortável. A mulher “suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali”, e espera o pedido “vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom”. Em torno de uma fatia de bolo e um refrigerante, os três balbuciam um “parabéns pra você” e a criança sopra três velinhas usadas, trazidas pela mãe. “A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo”, observa. “A mulher está olhando para ela com ternura — ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo.”
Depois de um tempo, cruzam-se o olhar do cronista e o do homem negro. “Ele se perturba, constrangido”, escreve Sabino, “vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso”. E aí o cronista faz seu milagre cotidiano, eternizando um efêmero sem arestas: “assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso”.
Espelho
Sob a rubrica “Aventura do cotidiano”, Sabino registra como extraordinária, digna portanto de seu olhar, a presença de negros onde não se supunha estarem e o fato de lá estarem à toa, como qualquer outro frequentador, preparando-se para “algo mais que matar a fome”. Deslocada no bar da Zona Sul carioca, a família também o é na crônica. O gênero que costuma ser festejado como uma das melhores expressões de um Brasil otimista e pacificado das décadas de 1950 e 1960 faz jus à fama pelo que mostra — e pelo que ignora. A crônica é sem dúvida espelho dessa sociedade, mas também é um dos tijolos que a sustentam, é reflexo e argamassa de uma divisão social implacável em que ao negro é permitido o protagonismo eventual na música, no esporte ou em um ou outro concurso de beleza. Na literatura, nem pensar.
Em abril de 1950, ano eleitoral que terminaria com Getúlio Vargas no Catete, Emanuel Vão Gôgo declarava nas páginas do Cruzeiro sua plataforma política. Além de garantir o direito de greve e da prisão perpétua dos grevistas, a criatura mais célebre de Millôr Fernandes promete avanços: “será incrementado o racismo, à semelhança do que se faz em países muito mais adiantados”. Quando abordava o tema, a revista mais vendida do Brasil em geral tratava-o como problema dos outros — e, como sugere o sarcasmo de Millôr, o que vinha de fora costumava ser sinônimo de progresso num país que acreditava viver seus golden years.
Entre os conselhos pedestres de Maria Teresa e as teses de Freyre, a crônica funcionou como anestesia para as dores da classe média branca
Outras colunas de
Paulo Roberto Pires
Ainda nas páginas da Cruzeiro, Maria Teresa, titular da coluna “Da mulher para a mulher”, declara no consultório sentimental a opinião cristalina dos que se julgavam livres de preconceito. Respondendo à singela angústia de Sidney — “Não consigo uma namorada” —, fala-nos um pouco mais do consulente. “Você está com complexo de inferioridade por causa da cor”, observa ela. “Não diga que é moreno. É um pouco mais do que isso. Admita essa verdade como ponto de partida”. Citando Machado de Assis e José do Patrocínio como exemplos de homens que brilharam por mérito próprio, conclui: “E esqueça esta questão de raça. Estamos num país onde não há racismo. E nem poderia haver, pois todo bom brasileiro deve orgulhar-se de ser o que é, isto é, descendente de brancos, pretos e índios”.
Entre 1948 e 1967, sempre que era possível, Gilberto Freyre fazia da coluna “Pessoas, coisas e animais” uma tribuna de defesa de sua tese da “democracia racial”. Incluindo-se entre “velhos adversários do preconceito racial”, Rachel de Queiroz vira e mexe voltava ao tema em sua prestigiada “Última página”. Em 1961, a cronista que tanto exaltava a Lei Afonso Arinos, que criminalizava o racismo, tinha entre suas aflições as atitudes afirmativas que resultavam no improvável “racismo reverso”. “Numa verdadeira democracia racial”, escreve ela em “A cor”, “não há como a gente se preocupar com a cor ou a origem racial de qualquer concidadão; formar grupos separados de negros é tão errado quanto admitir grupos isolados de brancos. Ninguém é branco nem ninguém é preto, tudo é brasileiro.”
Entre os conselhos pedestres de Maria Teresa e as teses de Freyre, a crônica funcionou, e muito bem, como anestesia para as dores da classe média branca. Em “Cores do preconceito”, publicado em agosto último no Portal da Crônica Brasileira, Humberto Werneck, editor do site e também editor sênior desta Quatro Cinco Um, faz um apanhado de como o racismo figurou nos textos de Rubem Braga, Otto Lara Resende e, é claro, Rachel. Todos eles intelectuais humanistas, sensíveis às causas sociais, em algum momento se pronunciaram sem rodeios em defesa da população negra, ainda que as dores do racismo sejam tematizadas mais na clave da empatia do que da emancipação.
Não é à toa que, em 1953, numa sofisticada análise que remete às origens da crônica ao familiar essay inglês, Vinicius de Moraes imagina o corpo humano como metáfora do jornal, estando o “coração” reservado ao gênero que também praticava. “Matéria tácita de leitura que desfoca o leitor da tensão do jornal e lhe estimula um pouco a função do sonho”, a crônica é, portanto, cordial, pouco afeita às determinações frias da objetividade e infensa às discussões mais indigestas — o fígado, na mesma metáfora, é o lugar que caberia ao “artigo de fundo”. A promessa de felicidade de Vinicius encerra um princípio básico: as amargas, não.
Em seu auge, a crônica terminaria por cristalizar-se na fórmula que, décadas mais tarde, dela deduziria Antonio Candido: “um fato miúdo e um toque humorístico, com o seu quantum satis de poesia”. Ainda que envolto em fumos metafísicos e candidato à atemporalidade, o “fato miúdo” lembra que o Brasil dos cronistas é muito, muito pequeno. Não é diverso na geografia, no ponto de vista ou na raça. Com as exceções de Rachel, Dinah Silveira de Queiroz ou Clarice Lispector, a crônica é assunto de homem, de homem branco, que vive de frente para o mar, no conforto da classe média alta carioca. No lirismo de crepúsculos e paixões, o “brotinho” não é uma jovem negra, como negro não é aquele que, à beira da piscina, afoga as mágoas num gim. No clássico de Paulo Mendes Campos, o amor acaba em todos os lugares que se possa imaginar, sempre circunscritos ao exíguo perímetro social, imaginário e afetivo de seus protagonistas.
Sendo a crônica em geral um ramal auxiliar, o ganha-pão de romancistas e poetas com obras a zelar no mundo da “alta literatura” — Rubem Braga continua até hoje a exceção —, não espanta que o gênero se consolide alheio à autoria negra. João do Rio, um dos mais notáveis cronistas da história, morre em 1921; Lima Barreto, no ano seguinte. Ambos adentram a década de 1950 esquecidos — ainda que em 1956 Francisco de Assis Barbosa publique a obra completa de Lima, os dezessete volumes de capa dura asseguram ao autor de Os bruzundangas um lugar perto do cânone e longe do grande público.
Sendo a crônica o ganha-pão de romancistas com obras a zelar no mundo da “alta literatura”, não espanta que se consolide alheia à autoria negra
Na minuciosa pesquisa que resultou em Silêncios prEscritos — estudo de romances de autoras negras brasileiras (1859-2006) (Malê), Fernanda Miranda registra que entre 1923 e 1944 não se publicou romance de nenhuma autora ou autor negro, intervalo dramático e eloquente que se repetiria entre 1951 e 1963. Em 1960 Carolina Maria de Jesus entra em cena com Quarto de despejo, na melhor das hipóteses catalogado precariamente como “documento sociológico” e, na pior e mais corrente, relato de um mundo exótico e distante.
Exceção
A exceção que por muito tempo passou batida é Antonio Maria. Em fins de 1964, quando morreu, aos 43 anos, ele não era identificado e tampouco se identificava como negro. Mais de uma vez, e com insistência, leituras nostálgicas desse Brasil dourado listam como características negativas de Maria a corpulência e a raça. Sempre suado, mal-ajambrado em ternos amarrotados, admira a certo tipo de narrador que o compositor e cronista tivesse sucesso com mulheres, por inconcebível que fosse um galã gordo e mulato, termo que destaco para marcar o caráter pejorativo da descrição. É esse o Antonio Maria que aparece na dissertação de mestrado recém-defendida pelo editor e pesquisador Guilherme Tauil na Faculdade de Letras da Universidade de São Paulo (USP).
Vento vadio, título da pesquisa, homenageia o livro que Maria planejou e que, derrotado por sua insegurança e indisciplina, jamais publicaria. Dentre seus colegas de ofício, ele foi o único a não resgatar suas crônicas da efemeridade dos jornais e revistas. O sentimento de exclusão não era estranho ao autor de “Ninguém me ama”, que escreveu versos como “Sou uma coisa infeliz/ Que num copo de uísque disfarça alegria” ou “Ninguém é mais triste do que eu”. Na superfície, a história de Maria é a de um “cardisplicente”, sempre interessado em quem não gostava dele, sempre flertando com o abismo. Mas me pergunto se não estaríamos aí diante de uma história em que os padrões de infelicidade advêm da exclusão de diversas formas e se refletem uns nos outros: pernambucano pobre entre gente bem posta do Sudeste, gordo entre esbeltos, atrapalhado entre elegantes, radialista criado no esporte entre cronistas curtidos na literatura, cronista entre escritores reconhecidos, letrista de música popular entre poetas e romancistas. E, talvez à sua própria revelia, negro entre brancos.
Em “Summer Jacket”, crônica pinçada na revista A noite ilustrada e inédita em livro, Tauil analisa um episódio exemplar. Numa festa de luxo em que o smoking era exigido, Maria aparece de summer jacket e, em seu paletó branco, é logo confundido com os garçons. “Sofria tanto aquele apoucamento, horas de lentos minutos, sem um pensamento ou lembrança na cabeça, gosto de passa velha na boca, suor na testa”, escreveu Maria, talvez por enxergar com uma nitidez mais comum em nossos dias que o mal-entendido não se devia apenas a uma transgressão do dress code.
Maria não é, no entanto, uma exceção virtuosa que confirma a regra da exclusão. Num outro achado da pesquisa, Tauil lembra que, em 1957, o cronista aparece de forma pouco lisonjeira na Introdução crítica à sociologia brasileira, de Alberto Guerreiro Ramos. No apêndice “Patologia social do ‘branco’ brasileiro”, o combativo intelectual negro analisa as formas como o racismo se entranha na sociedade. E cita a coluna “Mesa de pista”: “Nortista (sic) é também um inteligente redator de O Globo, jornal em que escreve diariamente uma crônica sobre a vida noturna do Rio. Na edição de 18/1/55 daquele jornal, o referido redator publica a fotografia de uma artista de night club, seguida desta legenda: ‘A moça de hoje — Esta é a bonita bailarina negra, Nilza, do elenco do Béguin. Bela de corpo e de cara. Dela se poderia dizer: ‘Isso em branco…’”.
Entre os jardins suspensos da mítica cobertura de Rubem Braga, em Ipanema, e as ruas em que Antonio Maria minerava personagens e casos do “Romance Policial de Copacabana”, a crônica cumpriu e muito bem a função de suavizar a dureza da notícia com apurado tempero literário. Nos anos 1970, o título de uma excepcional série de antologias publicada pela Ática definiu-a com precisão: trata-se de um gênero Para gostar de ler, mas que também merece atenção pelo que deixou de mostrar.
O colunista escreve quinzenalmente na revista dos livros.
Matéria publicada na edição impressa #39 nov.2020 em outubro de 2020.
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