Literatura Negra,

Artistas que comem beleza

Finalista do National Book Awards, romance de Gayl Jones traz  triângulo amoroso negro em que arte, loucura e morte se confundem

07nov2023 | Edição #75

Apanhadora de pássaros corresponderá à atividade profissional exercida por uma mulher, talvez enegrecida, tal como pescadora de ostras, catadora de papéis, passeadora de cães, fazedora de chuvas ou cortadora de orelhas? Ou apanhadora de pássaros dará conta de uma máquina, um instrumento ou artefato com que se apanham um ou mais pássaros em pleno voo, atendendo-se ao ditado já superado pelos ambientalistas de que mais valeria um pássaro na mão do que dois voando? E quem será apanhado? Essas são perguntas que garotas de conversa mole fazem para passar o tempo da moleza. Talvez uma resposta não disjunte outra, assim como objetos não se disjuntam numa escultura, por mais singulares que sejam.

Nesse sentido, Apanhadora de pássaros se constitui no nome e sobrenome da escultura engendrada com pedaços de madeira, alumínio e objetos perdidos, que há anos sua criadora fatal, a escultora Catherine, monta e desmonta. Apanhadora de pássaros também intitula a tramamefricana na qual Gayl Jones fatalmente apanha os personagens Amanda Lei da Palavra (Wordlaw), Ernest Açúcar Mascavo (Shuger) e Catherine nem tão doce assim, embora essa seja uma acusação falsamente justa, já que o açúcar pertence a Ernest. Também poderia ser uma acusação injustamente verdadeira, considerados os cem olhos de Argos Panoptes da lei psiquiátrica que atestam a insanidade da escultora.


O romance finalista do National Book Awards Apanhadora de pássaros, de Gayl Jones

Fazia um mês que Cathy tivera alta do hospital em Milão e novamente tentara matar Ernest, agora em Ibiza. Mas a tentativa de assassinato insiste apenas naquilo que os olhos alienados às cenas de crimes, a filmes de terror ou de suspense e também ao artigo 121 do Código Penal brasileiro alcançam desver. Cathy fora a Milão receber um prêmio expresso em dinheiro e troféu de latão e ouro. Com esse apetrecho, mudou sua fase artística, fracassando na mais recente tentativa de assassinato, o que significou um êxito.

Certa vez, tentou matar Ernest com uma estante de aço. Outra vez, atacou-o com ferro em brasa. Em uma ocasião, Amanda abriu a porta e a viu debruçada sobre ele. Não estavam transando num sentido ordinário. Cathy segurava uma escultura de vidro, pronta para derrubá-la na nuca de Ernest. A escultura havia sido enviada pelo correio por outra apanhadora de pássaras e pertencia à fase transparente de Catherine.

Catherine não é uma assassina incompetente, mas uma artista que produz a partir da frustração premeditada da morte

Situações como essas fazem com que materiais e apetrechos sejam retirados das mãos e dos olhos de Catherine. Cada tentativa de assassinato com certo objeto e sua consequente supressão do mundo implicam uso de novo material substitutivo por parte dela. Vidro, pedras, pregos, chaves de fenda, furadeiras: objetos que ela não pode usar. Então, precisa pesquisar, procurar e testar até cansar deles, já que não pode se cansar de Ernest. A frustração do assassinato é premeditada — ao mesmo tempo em que lhe impõe algo novo no campo de criação, ela a distancia do marido-enfermo-enfermeiro com um período de internação providenciado por ele, para que as coisas continuem familiares.

Os apetrechos instrumentalizados pela escultora representam tanto o novo na obra de arte em construção quanto o sentido original da morte, essa que sempre aponta para o novo da repetição. Catherine não é uma assassina incompetente, mas uma artista que produz a partir da frustração premeditada da morte. Esse é o tipo de sexualidade que talvez mantenha o trisal. Mas não apenas isso.

Lei da Palavra, ou Wordlaw no original em inglês, é sobrenome, melhor seria sobremesa, e também nome artístico de Amanda. Um nome apanhado de um homem com quem se casou. Se a lei da palavra pertenceu a ele, agora pertence mais a essa que ama em constância. Parece que Lei da Palavra foi apanhada por um crítico que se referiu a ela, em razão de um livro, como putinha safada que atingira a maioridade. Ela deu ao crítico o lugar mesmo de apanhador, ao que parece, e começou a escrever livros de viagem e nas viagens ensaiar sua playlist de putona, torcendo muito “de boas” as relações entre apanhadores e apanhadas.

Família enjambrada

Catherine, Ernest e Amanda constituem uma família enjambrada como a própria “Apanhadora de Pássaros”, escultura de Cathy e escritura de Amanda. Escultura e escritura são feitas de pedaços entrecortados por cartões-postais, alguns repletos de palavras e outros com mais ruídos do que silêncios. É incrível como um romance pode ser formatado com cartões-postais.

Depois daquela tentativa de usar no corpo do marido uma escultura de vidro para se elevar a outra instância artística, ela lhe gritou que a deixasse sozinha com sua mulher, Amanda, quando ele voltou para o apartamento. A boca da loucura felizmente diz algo muito louco.

Amanda, Catherine e Ernest são apanhados pela trama daquele itã em que Obá e Oxum brigam pelo amor de Xangô

Amanda, Catherine e Ernest são apanhados, certamente sem saber, pela trama daquele itã muito conhecido no Brasil, em que Obá e Oxum brigam pelo amor de Xangô. Oxum aparece como a mais amada por ele, assim como Cathy pareceria a mais amada por Ernest. Mas o nome de Amanda Lei da Palavra não deve ter sido em vão na trama. Oxum domina a arte da cozinha, e Obá pretende imitá-la. Não sei se Amanda quereria imitar Catherine em algo, mas ambas são artistas que comem beleza e que servem Ernest dos objetos pertencentes ao terreno da feitura delas. Talvez quisessem servir veneno na forma de mercúrio. Oxum queria vencer definitivamente Obá e disse a ela que dois cogumelos que boiavam na sopa para Xangô eram suas orelhas. Xangô haveria de se deleitar com a iguaria, o que, de fato, ocorreu.

Na semana seguinte, Obá cortou uma de suas orelhas e pôs na sopa para Xangô, que, percebendo do que se tratava, ficou enojado. Ao final, Xangô se toma de cólera em razão das brigas entre as esposas que, tentando fugir dos raios que ele lança, se embrenham no mato, distanciando-se cada vez mais dele, ou melhor, ficando cada vez mais juntas entre si. A coisa toda era entre elas e não contra ou a favor dele. Talvez Ernest tenha sido posto por Catherine e Amanda no lugar equivalente ao Xangô ora citado. O apanhado foi ele.

Loucura

Para Amanda e Ernest, nada quanto à loucura foi oficialmente declarado por alguma boca de receitas médicas e dentes tortos, que, no mais das vezes, gostaria de beijar seu próprio hálito de entorpecência. Então, por ser a boca da sujidade, mediadora de toda a merda que se declara, Catherine insiste na posição de louca legalizada da família e, desse lugarejo do dito, ensaia organizar as posições legais do trisal, como Obatalá organizaria os lugares das coisas no mundo, sempre com um manto de dúvida, tomado o mundo como escultura à moda assemblage.

Cathy — e me perdoem a intimidade, mas gosto de me passar por quem não fui — me chamaria de pequena vadia negra perversa da galera por isso, e outros diriam que estou rebaixando a divindade do pano branco com essa comparação estúpida. Não sei se limpo meus pés de pássaro apanhado dizendo que o trisal forma uma unidade fragmentária como a pirâmide de Quéops. Isso, por algo incidental feito comida grega, vim sabê-lo lá pela página 25 do romance:

O que eu sou? Quero dizer, se Amanda não estivesse aqui com sua personalidade… e estivessem olhando para este casal negro anônimo, você e eu, o que eu seria?

Talvez Ernest o saiba. Ele trabalha como escritor freelancer de artigos de divulgação científica e parece ter abandonado um futuro brilhante como médico da família para acumular as funções quase vitalícias de enfermeiro particular e de paciente de Catherine, no sentido do lugar subordinado a ela que parece ocupar: um lugar de salvador de mortes, digamos. Atenção ao verbo “parece”, há algo de semblante que Gayl Jones e Nina Rizzi (autora e tradutora) fazem circular entre os pássaros na apanhadora.

Catherine insiste na posição de louca legalizada da família e ensaia organizar as posições legais do trisal

Catherine, que deveria salvar o mundo da morte, agora tentava salvar seu marido da vida, para que ela mesma não morresse. Se a escultura se apresenta como depositária de objetos estetizados mortos, Ernest se apresenta como depositário de objetos estetizados vivos. Ademais, vivo ele poderia carregar a maleta de remédios de Catherine. E vivo ele poderia mastigar as frases que colocavam apanhadora de pássaros num lugar toda vez igual a si mesmo, familiar ao da morte.

Com todo o respeito que Ernest não merece, isso é o que soa estranho, pois o lugar igual a si mesmo deveria lhe parecer bem familiar. De qualquer forma, para ele, a escultora deveria fazer outra escultura. Mais preocupado com o saber do que com o sabor da beleza que se come, ele não entendeu que ela já estava em outra escultura. Bem, mas tal situação não é nada estrangeira para nós, garotas de conversa mole.

Quem escreveu esse texto

Eliane Marques

Matéria publicada na edição impressa #75 em outubro de 2023.