Coluna

Renan Quinalha

Livros e Livres

Na era do poliamor

Tobias Carvalho capta espírito do tempo de jovens gays, que querem ir além dos modelos de relação monogâmicos e heteronormativos

30set2023 | Edição #74

Em uma célebre entrevista de 1982, Foucault afirmou que “o melhor momento, no amor, é quando o amante se distancia no táxi”. Há diversas maneiras de analisar tal consideração do filósofo francês sobre as diferenças entre a vivência do amor e do sexo entre homossexuais e heterossexuais. Mas o argumento central é o de que o regime heteronormativo da nossa cultura cristã teria oferecido aos heterossexuais um repertório de imagens, inclusive literárias, capaz de narrar e dotar de sentido as práticas e os afetos entre pessoas de sexos opostos. 

Isso faria com que heterossexuais, historicamente, tivessem privilegiado, em sua estética, o momento de flerte, de conquista, de uma relação que poderia se arrastar por anos e que antecederia o ato sexual em si. Por sua vez, a falta de suportes sociais e de referências estéticas do amor cuja própria existência deveria ser silenciada levaria homossexuais a uma consumação direta e urgente do ato sexual como o primeiro e, muitas vezes, único tipo de contato. Não era possível acessar uma expressão cultural necessária para essa elaboração.

Durval Muniz de Albuquerque Jr. bem sintetizou essa condição ao afirmar que “os amores homossexuais seriam amores que não têm tempo ou de quem não têm tempo a perder”. Afinal, a violência homofóbica que ronda as relações teria impedido homossexuais de cultivar e de manifestar seus afetos publicamente. Destituídos de modelos narrativos e de um imaginário próprio, pouca densidade restaria para elaborar suas experiências para além do coito e do gozo mais imediato.

Do sexo, brotam outros discursos e uma nova estética que é do prazer, mas também do afeto

Daí o estigma de promiscuidade tão associado aos homossexuais. Impelidos a transar escondidos em banheirões, parques, guetos isolados, ainda eram obrigados a carregar comportamentos vistos como estigmatizantes que foram obrigados a criar para sobreviver. Mas nem sempre os homossexuais são vítimas. Ao contrário, suas estratégias de sobrevivência criaram modos de vida e de libertação, como demonstra Quarto aberto, do escritor gaúcho Tobias Carvalho. A obra recém-publicada pode ser lida, ao mesmo tempo, como confirmação e contestação dessa leitura paradigmática de Foucault sobre a sociabilidade gay.


Quarto aberto, do escritor gaúcho Tobias Carvalho, demonstra como estratégias de sobrevivência de homossexuais criaram modos de vida e de libertação

O protagonista e narrador Artur, com seus vinte e poucos anos, não conta com uma rede de apoio familiar para além de seu companheiro, tendo abandonado o curso de artes visuais para tocar a vida. Seu tempo é dividido entre um trabalho entediante em uma livraria e as performances como drag.

Sem grandes pretensões profissionais, sua maior realização parece ser a relação aparentemente sólida e aberta com o namorado, Caíque. Este, um pouco mais velho, já formado em economia, parece mais maduro e, a despeito da militância em um partido de esquerda, traça uma carreira promissora no mercado financeiro.

No entanto, essa relação de anos é abalada por um reencontro não planejado do narrador com Eric, um peguete do passado. A novidade é que, agora, o ex surge mais atraente, bem resolvido com sua sexualidade e com o namorado Antônio. Este logo descobre o que seria uma traição na sua relação fechada, desencadeando uma crise de ciúmes que, ao invés de afastar, acaba aproximando os dois casais.

Quadrilha drummondiana 

Entre trocas frenéticas de mensagens no WhatsApp e em aplicativos de pegação, invasão de privacidade e um enredo poliamoroso, forma-se uma deliciosa quadrilha drummondiana, em versão gay e bem contemporânea: Artur que ama Caíque que ama Eric que ama Antônio. Juntos e ao mesmo tempo, em ordens diversas e cambiantes. Todo mundo transa, ama, discute e rivaliza, em conexões de diferentes intensidades, com todo mundo. E ninguém precisa escolher e renunciar a nada de cara.

Alguns chamariam isso de puro narcisismo ou hedonismo; outros, de um aprendizado em liberdade. Independentemente do nome, um ponto alto do livro são as constantes cenas de sexo, que pulsam por meio da linguagem direta e envolvente do autor. Aqui, temos a confirmação da hipótese foucaultiana: a literatura homossexual é mesmo profícua para narrar os desejos em ação, os atos sexuais.

Forma-se uma deliciosa quadrilha drummondiana, em versão gay e bem contemporânea: Artur que ama Caíque que ama Eric que ama Antônio

Contudo, as décadas de distância entre a análise de Foucault e a atual era do poliamor permitem novos desenvolvimentos para a literatura LGBTQIA+. Sem tirar o foco da liberdade sexual um tanto desenfreada, a geração nascida nos anos 2000 encontrou um imaginário sobre ser gay que não passa mais apenas pela doença, pelo crime e pelo pecado. Assim, esses jovens conseguem fazer novas incursões com os recursos narrativos que estão herdando das lutas das gerações anteriores. Do sexo, brotam outros discursos e uma nova estética que é do prazer, mas também do afeto.

Desse modo, entre viagens, bebidas, drogas, festas e transas, os personagens vão tecendo uma rede de envolvimento com carinho e cuidados que complexifica o universo do desejo. As relações não são, como antigamente, vividas às escondidas: as famílias sabem dos namoros e, mesmo quando a contragosto, toleram; há direitos, ainda que formais, assegurados na ordem jurídica; a sociedade, portanto, vê-se forçada a conviver com a diversidade. No entanto, eles não querem reproduzir a estrutura tradicional dos relacionamentos monogâmicos e hetenormativos. Desejam ir além.

Carvalho conseguiu captar parte importante do espírito de época de uma sociabilidade entre jovens gays que ainda vai dar muito o que falar. Nem tudo dá sempre certo e nem todo mundo sairá ganhando nos jogos eróticos dos novos tempos. Mas, considerando que setores conservadores se articulam no Congresso Nacional em pleno 2023 para impedir o reconhecimento das uniões homoafetivas, é um deleite ver como as novas gerações podem viver e narrar suas próprias histórias de prazer e de afeto com mais liberdade.

A editoria Livros e Livres, focada em títulos com temática LGBTQIA+, tem o apoio do Fundo de Direitos Humanos da Embaixada do Reino dos Países Baixos.

Editoria com apoio do Fundo de Direitos Humanos da Embaixada do Reino dos Países Baixos

Desde 2023, o Fundo de Direitos Humanos da Embaixada do Reino dos Países Baixos apoia a cobertura especial Livros e Livres, dedicada a títulos com temática LGBTQIA+

Quem escreveu esse texto

Renan Quinalha

É professor de direito da Unifesp e autor de Movimento LGBTI+: Uma breve história do século 19 aos nossos dias (Autêntica).

Matéria publicada na edição impressa #74 em setembro de 2023.