Literatura japonesa,

Terror sem limites

Shintaro Kago não poupa detalhes sórdidos e explora possibilidades do mangá ao se inserir em 'Pedacinhos'

11abr2024 • Atualizado em: 01ago2024
Uma das vítimas do assassino em série de 'Pedacinhos' (Shintaro Kago/Divulgação)

Nudez, cadáveres, órgãos, cocô, tortura e sadomasoquismo. As palavras não costumam frequentar o vocabulário desta revista, mas é com elas que Shintaro Kago define seu estilo no mangá Pedacinhos. Ali, explora o que os japoneses chamam de ero guro, uma contração dos termos em inglês para “erótico” e “grotesco”.

O pior é que a história vai além do conteúdo desses termos. Tem também insetos andando debaixo da pele de meninas, cacos de vidro esfregados nos olhos e um sem-fim de mutilações. Um dos pontos altos (ou baixos) é quando um homem tem um orgasmo enquanto um caramujo caminha por seu pênis. Deve estar claro a esta altura: não é uma leitura para todo público.

Mas público Kago tem, e bastante. O mangaká é conhecido no Japão, e respeitado, por sua obra erótica, grotesca e absurda. Estreou em 1988 e produziu, desde então, uma ampla e perturbadora sequência de histórias. Chegou ao Brasil em 2021 com Dementia 21, que Clara Rellstab definiu bem em resenha para esta revista como uma mistura de Dalí, cultura japonesa e pornochanchada. E era um dos trabalhos mais comedidos do autor.

Em 2023, saiu a tradução de A grande invasão mongol para o português. Nesse título, Kago reinventa a história da humanidade. Os exércitos mongóis, na sua versão, cavalgavam pelas estepes montados não em cavalos, mas em perturbadoras mãos gigantes.

Maníaco fatiador

A princípio, a história de Pedacinhos parece simples. O leitor acompanha um assassino em série conhecido como “o maníaco fatiador”. O apelido é autoexplicativo: trata-se de um maníaco que fatia as suas vítimas. Segue sempre a mesma rotina, caçando mulheres uma vez por mês, que é o tempo que, explica, ele leva para recarregar suas energias sinistras.

Kago não poupa o público de detalhes sórdidos, tanto os sexuais quanto os violentos, escancarando as mutilações. Os desenhos são em preto e branco, mas o sangue é evidente, como se estivessem pintados de escarlate. O autor se detém no traçado das vísceras espalhadas pelo chão.

Além de simples, a história parece um pouco tonta. O leitor entende de imediato quem é o assassino, então não há mistério. Essa, porém, é apenas a epiderme do mangá. Kago logo arranca essa camada com violência, fazendo jus ao seu estilo. Debaixo, entre vasos sanguíneos rompidos, há uma história bem mais complicada.

Há dois pontos de vista em Pedacinhos. O primeiro é o do maníaco fatiador. O segundo é o do próprio Kago, que não só quebra a quarta parede — ele a destroça. Fala com o leitor e explica suas decisões artísticas. Aos poucos, começa a adentrar o enredo e interagir com os personagens. Ali, acaba se sujando de sangue e entranhas.

Os capítulos do ponto de vista de Kago são uma aula de narrativa sequencial. O autor discute em detalhes as possibilidades e limitações das histórias em quadrinhos, explicando a lógica dos mangás. Enquanto isso, apresenta exemplos claros do que está dizendo, em texto e arte. Professores de cursos de escrita criativa poderiam incorporar essas páginas a suas aulas.

O artista japonês Shintaro Kago na HQ

Imagine, por exemplo, uma mulher. O quadro do gibi mostra apenas seu torso. Parece uma pessoa normal, Kago diz. Depois, abre a perspectiva e mostra que ela está cortada ao meio. Em um mangá, afirma, não há movimento, som nem cheiro. Não dá para saber quem está vivo.

Com essa informação técnica, Kago fornece as pistas para a resolução do mistério do gibi. Vai crescendo também, porém, a ansiedade do leitor. Depois que fica claro que um mangaká pode esconder pistas fora dos quadrinhos, em espaços inalcançáveis, não é só a quarta parede que fica rompida. A confiança do leitor, seu pacto com o autor, também se quebra. A partir daí, qualquer coisa pode acontecer. Já não há regras claras para as narrativas.

Nesse gibi, a arte está a serviço do pesadelo. O traço de Kago é bastante limpo, com linhas claras e bem definidas, traçadas com nanquim. Mas quando quer aterrorizar o leitor, carrega nas hachuras, que são os traços e rabiscos que criam o efeito de preenchimento e sombreamento. Com o desenho, consegue mostrar a mudança de humor de um personagem sem ter que explicar tudo nos balões de texto.

As páginas parecem estralar, como ossos rompidos, quando são viradas. Não há banalidade na violência, porém — ao contrário do que vemos em alguns filmes de ação. A brutalidade do ero guro é feita sob medida, e se encaixa bem no enredo. A bem da verdade, a gente até se acostuma às vísceras. Mais difícil é se acostumar à misoginia do maníaco fatiador e à insistência incômoda de Kago de exibir o nu feminino, mutilado ou não.

As páginas parecem estralar, como ossos rompidos, mas não há banalidade na violência

O trabalho de artistas do ero guro, como Kago, alimentam uma certa curiosidade a respeito do que há de mais violento nas nossas sociedades. Existe uma crítica social, atrelada a uma necessidade de catarse. Como se espiássemos a barbárie alheia para não precisarmos cometê-la.

Pedacinhos inclui, além da história principal, uma série de episódios curtos. Se é que isso é possível, são narrativas ainda mais perturbadoras. Numa delas, uma mulher tem que lamber seu marido ressecado para que ele tenha, afinal, um pouco de umidade. Em outra, uma jovem deprimida decide cortar todas as coisas eretas do mundo.

Esses contos são um pouco desnecessários no volume. A história central é tão impactante e suas viradas de enredo tão magistrais que teria sido melhor encerrar a leitura com ela, em vez de prolongar a experiência com episódios fracos. Mesmo a arte de Kago parece desinteressada nessas narrativas curtas, sem tantos detalhes e esmero.

O livro traz ainda uma entrevista com o autor que, do mesmo modo, não precisava estar ali. Adiciona pouco. Na verdade, até subtrai. Um dos trunfos de Pedacinhos é a genialidade da autoinserção de Kago. Quando ele aparece fora da narrativa, diminui o impacto. O maníaco fatiador poderia ter cortado esse trecho e nos deixado com um produto melhor.

Editoria com apoio Japan House São Paulo

Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.

Quem escreveu esse texto

Diogo Bercito

É jornalista e autor de Vou sumir quando a vela se apagar (Intrínseca).