Literatura japonesa,

Como homens podem tornar o mundo melhor para mulheres

Escritora defende que pais confrontem certezas enraizadas e mães deixem de assumir alguns cuidados com a família e a casa

04mar2024

Quando eu era criança, ainda havia muitas casas de banho na cidade. Enquanto nos lavávamos ou relaxávamos na água quente, uma senhora entrava vestida para limpar os fios de cabelo ou lixo acumulados no protetor de ralo.

Não era agradável ver uma senhora vestida entre nós, todas despidas. Mas a minha estranheza foi maior quando soube que essa mesma senhora limpava o protetor de ralo da ala masculina. Uma mulher entra num ambiente onde só tem homens nus para limpar o lixo produzido por eles. Quem limpa a sujeira produzida pelos homens não é um homem, mas uma mulher. Até mesmo onde só tem homens pelados. Como essa mulher se sente? E os homens, o que pensam a respeito? Naquela época não consegui expressar a minha estranheza em palavras, mas intuí que presenciava uma situação terrivelmente grotesca e, ao mesmo tempo, importante.


A escritora japonesa Mieko Kawakami, autora de Peitos e ovos (Intrínseca) [Charly Triballeau/afp via Getty Images]

Com o tempo, compreendi que aquela estrutura era o senso comum tanto da sociedade quanto da família japonesa em relação à divisão sexual do trabalho. O senso comum diz que as mulheres, dotadas de instinto maternal, são congenitamente aptas às várias formas de cuidado — cuidar de crianças, cuidar de idosos, cozinhar, manter a família saudável, se preocupar com o bem-estar de todos e, inclusive, realizar todo o trabalho emocional. Não só isso: é esperado que elas se sintam realizadas executando essas tarefas.

Hoje em dia, os cuidados com filhos e idosos podem ser parcialmente terceirizados — apesar do alto custo para acessar esses serviços —, mas até pouco tempo era normal as mulheres cuidarem dos sogros até o fim da vida, ajudando inclusive na higiene pessoal e trocando fraldas. 

Elas cuidavam de toda a família, sobretudo dos filhos homens, que recebiam tratamento preferencial. Estes, por sua vez, cresciam achando que isso era normal e, quando se casavam, não duvidavam que sua esposa se tornaria uma mãe trabalhadeira e atenciosa com os filhos homens, assim como foi a sua mãe.

O senso comum diz que as mulheres, dotadas de instinto maternal, são aptas a cuidar de crianças e idosos

“Eu sou uma existência que recebe os cuidados das mulheres.” Essa percepção continua a ser reproduzida na sociedade e na família japonesa como uma sabedoria corporal básica dos homens. Eles concordam que a discriminação sexual deve ser combatida, mas não admitem que cabe a eles também assumir as tarefas não remuneradas de cuidar da família. Praticamente nenhum homem toma atitude para mudar essa situação, abrindo mão das vantagens dos direitos e interesses adquiridos. Isso vale para todos os homens, sem distinção de classe social.

“O que um pai deve ensinar ao seu filho homem para tornar o mundo melhor para as mulheres”: fui convidada a refletir sobre esse tema. Geralmente o que os pais querem ensinar aos filhos e o que estes aprendem não coincide. Os filhos muitas vezes aprendem não com o que os pais dizem, mas com o inconsciente deles. Por exemplo, muitos pais que se consideram progressistas e que dizem estar preocupados com a educação dos filhos vangloriam-se do fato de respeitar a autonomia e a opinião deles. Mas quando perguntam ao filho: “Qual você prefere? A ou B?”, muitas vezes já esperam uma resposta, e se o filho escolhe, por exemplo, a opção B, dizem: “É mesmo? Que legal…”. Nessa hora, em vez de ouvir o que os pais dizem, o filho assimila a expressão de decepção deles.

Por mais que um pai diga coisas incríveis da boca para fora, se as palavras não forem acompanhadas de ação, não chegarão à consciência do filho. Vamos imaginar novamente um pai que se considera progressista: ele se mostra indignado com as notícias de discriminação contra as mulheres e defende tanto o seu combate como a importância da igualdade de gênero. No entanto, em sua casa, deixa a esposa, mãe do seu filho, realizar a maior parte dos cuidados, de forma inconsciente e sem mostrar nenhum constrangimento. O filho, em vez de farejar tal hipocrisia, aprende as vantagens dessa atitude de “dois pesos, duas medidas”: sente o prazer de ser um homem intelectual capaz de mostrar compreensão com os direitos das mulheres, ao mesmo tempo em que desfruta das vantagens de ser como o pai, que recebe os cuidados delas sendo dispensado das tarefas extenuantes. Quando esse filho se tornar marido e pai, o senso comum será reproduzido como se fosse a coisa mais natural.

Educar maridos

Então, o que fazer? No Japão, há quem diga que as esposas devem educar os maridos. Que bobagem! Elas não têm tempo para isso e, enquanto tentam educar os parceiros, os filhos crescem. Isso é impensável. Só de ver o índice de desenvolvimento de gênero do país, percebemos isso: a proporção de mulheres é extremamente baixa nos principais postos em várias áreas, incluindo na política e no mundo corporativo. Os homens japoneses em geral não suportam a ideia de serem ensinados por mulheres, seja qual for a natureza do aprendizado. Tem quem diga que os homens devem educar os homens já que eles escutam o que outro homem diz, mas geralmente um debate entre pessoas que possuem direitos e interesses adquiridos acaba em conversa fiada hipócrita. Além disso, eles, que nunca se envolveram em trabalhos de cuidado, vão ensinar o quê? Todos os maridos já são adultos crescidos. Não dá para esperar que eles mudem. É inútil tentar colocar saquê novo num recipiente velho. 

Então a única coisa a ser feita no momento presente para educar um filho é a mãe tomar uma atitude e o pai apoiá-la de modo implícito. O modo de agir da maioria das mães e esposas é perfeitamente compreensível: estão exaustas e preferem elas mesmas realizar as tarefas domésticas do que tentar convencer o marido a dividi-las. Entendo também a resignação delas, pois se elas não as fazem, ninguém mais faz, e tudo fica estagnado dentro de casa. Mas, pense bem: se você, que é mãe, morrer agora, alguém vai ter que assumir essas tarefas no seu lugar.

O meu conselho para as mães é: recusem-se a fazer alguns dos trabalhos domésticos e de cuidado, considerados femininos

O meu conselho para as mães é: com uma firme determinação, recusem-se a fazer alguns dos trabalhos domésticos e de cuidado, considerados predominantemente femininos. Demonstrem, por meio de ação, que vocês são seres humanos iguais aos homens, e rejeitem a ideia de que o gênero feminino é encarregado dessas tarefas.

Para isso, é importante esposas e mães mostrarem que estão aproveitando a vida e priorizando a própria felicidade. Quando prepararem mingau de arroz para o filho doente, demonstrem que não o fazem por ser mãe ou mulher, mas por amor e responsabilidade com ele. Os homens também devem estar prontos para fazer o mingau de arroz quando alguém adoecer. Precisamos cultivar na consciência dos homens o senso comum de que eles conseguem cuidar de si mesmos e ajudar os outros quando for preciso.

Famílias são formadas por indivíduos. A relação familiar, por mais estável que pareça, não deve ser encarada como algo incontestável. Com essa compreensão básica em mente, seguida de ação, poderemos ter a oportunidade de mudar algumas certezas inconscientes enraizadas nos pais. E essa mudança no inconsciente dos pais — principalmente no do pai — pode criar uma mudança no entendimento sobre gênero e cuidados nos nossos filhos.  

Tradução de Eunice Suenaga
Copyright © 2024 by Mieko Kawakami
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Quem escreveu esse texto

Mieko Kawakami

Cantora e escritora japonesa, é autora de Peitos e Ovos (Intrínseca).