Literatura japonesa,

Entre um café e outro

Aliando viagem no tempo e relações humanas, terceiro volume de série japonesa mantém fórmula que a tornou sucesso mundial

08fev2024

“Se fosse possível viajar no tempo, quem você gostaria de encontrar?” É com esse mote que Toshikazu Kawaguchi escreve a série japonesa Antes que o café esfrie, sucesso comercial absoluto nos países em que foi publicada, inclusive no Brasil, com mais de 3 milhões de exemplares vendidos no mundo. O terceiro volume da série foi lançado por aqui recentemente pela editora Valentina e já atingiu a lista dos mais vendidos. A tradução foi feita do japonês por Jefferson José Teixeira.


A narrativa de Antes que o café esfrie, de Toshikazu Kawaguchi, traz elementos mágicos com foco nas relações humanas e no sentimento de perda

Lançado no Japão em 2015, o romance inaugural foi adaptado de uma peça premiada do próprio autor — que é dramaturgo e dirigiu o grupo teatral Sonic Snail — e ganhou três sequências, em 2017, 2018 e 2021 (o quarto volume ainda não foi traduzido), além de uma fraca adaptação cinematográfica em 2018, e uma série baseada no livro que está sendo produzida.

É possível entender a razão desse êxito: a narrativa traz elementos mágicos cujo foco está nas relações humanas e no sentimento de perda, o que tem um apelo, digamos, mais universal. Kawaguchi faz uma interpretação própria do subgênero da “viagem no tempo” na forma do café Funiculì Funiculà. Inaugurado em 1874, na Era Meiji, numa ladeira de Tóquio, o café é pequeno, não tem janelas (impedindo que se saiba se é dia ou noite), tem uma decoração em tons sépia e três relógios com horários diferentes. A lenda urbana em torno do lugar faz com que receba visitantes que desistem de fazer a viagem no tempo depois de ouvir suas regras:

Você só pode encontrar no passado pessoas que já estiveram no café.
Você não pode fazer nada no passado para mudar o presente.
Na cadeira que permite voltar ao passado, e há somente uma, tem um cliente sentado [um fantasma, na realidade]. Você precisa esperar que ele ou ela se afaste da cadeira [em geral, quando vão ao banheiro].
No passado, você precisa ficar sentado no mesmo lugar e não sair dele em nenhum momento.
Há um limite de tempo. A permanência no passado terá início quando o café for servido e você precisará voltar antes que ele esfrie.

Há outras regras que vão sendo expostas ao longo dos livros, assim como algumas informações importantes: a pessoa que ocupa a cadeira onde é possível viajar no tempo é uma pessoa que viajou no tempo e se esqueceu de tomar o café antes que esfriasse e, por isso, tornou-se um fantasma. Ou seja, não é só a natureza conhecida da viagem no tempo dentro da literatura que Kawaguchi altera, mas também a própria ideia de fantasma, que nos livros ganha uma certa materialidade. Claro que as relações com esses seres espectrais no Japão trazem diferenças com as da Europa, como se pode ver em Kwaidan: histórias de fantasmas e outros contos estranhos do Japão antigo (Fósforo, 2023), de Lafcadio Hearn, e em releituras atuais, como o excelente Onde vivem as monstras (Gutenberg, 2023), de Aoko Matsuda.

Se não é possível modificar o presente ao viajar para o passado, por que então empreender essa viagem?

Toda a ação dos livros, portanto, se passa dentro do café — o que denuncia a sua origem no teatro — com personagens recorrentes que aparecem em momentos diferentes em cada uma das quatro histórias. Os mais frequentes são, claro, os donos do Funiculì Funiculà: o homenzarrão Nagare, com um coração tão grande quanto seu corpo; Kei, a sempre sorridente mulher de Nagare; e a garçonete Kazu, prima de Nagare e responsável por servir o café para os viajantes e fazê-los lembrar de voltar “antes que o café esfrie” — em torno de vinte a trinta minutos.

Separadas como contos independentes que se entrecruzam à medida que a leitura avança, as narrativas principais do primeiro livro trazem uma mulher quer voltar ao passado para dizer que ama o namorado antes deste se mudar para os Estados Unidos; uma mulher mais velha volta para um tempo antes de seu marido com Alzheimer esquecê-la; uma cliente assídua do café reencontra a irmã morta num acidente; e uma mãe viaja para o futuro para encontrar a filha que não conheceu.

Já o segundo livro, que se passa alguns anos depois do fim do primeiro, foca mais em reencontros com pessoas que morreram: como o de dois amigos depois da morte de um deles, um filho e sua mãe, um casal de namorados e um detetive da polícia e sua esposa morta num assalto. Em paralelo, a história de Nagare, Kazu e o resto da família chega ao fim de um ciclo.

Reboot

O terceiro livro é uma espécie de reboot da série, uma vez que o arco dos personagens principais se encerra de modo satisfatório no segundo. Agora, Nagare e Kazu estão trabalhando no café Donna Donna, na ilha de Hokkaido, no norte do Japão, servindo turistas num local com vista para o mar. Pertencente à mãe de Nagare, o lugar também possui uma cadeira ocupada por um fantasma onde é possível viajar no tempo seguindo as mesmas regras do Funiculì Funiculà. Novos personagens e dramas humanos são apresentados, mas a estrutura segue a fórmula que agradou nos livros anteriores: quatro capítulos que focam nas histórias de clientes que frequentam o café, entremeadas às vidas dos funcionários.

A grande questão que Antes que o café esfrie propõe é: se não é possível modificar o presente ao viajar para o passado, por que então empreender essa viagem? É o que muitos dos personagens se perguntam e também os leitores de senso prático. No entanto, é um equívoco pensar que o presente não muda, pois quem viaja no tempo volta modificado, com uma grande vontade de viver e de perseguir a felicidade. Há um certo moralismo e uma ode à meritocracia ao sugerir que a felicidade está nas próprias mãos, e os conflitos são resolvidos de modo rápido e simples. São livros que trazem conforto ao leitor, e não um desafio — o que não é um problema. Antes que o café esfrie é uma leitura que pode servir como um antídoto para nossos tempos tão cínicos.

Correção (9 de fevereiro de 2024): uma versão anterior deste texto dizia que a tradução de Jefferson José Teixeira foi feita da versão em inglês.
A editoria de Literatura japonesa tem o apoio da Japan House São Paulo.

Editoria com apoio Japan House São Paulo

Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.

Quem escreveu esse texto

Paula Carvalho

Jornalista e historiadora, é autora e organizadora de ireito à vagabundagem: as viagens de Isabelle Eberhardt (Fósforo).