Literatura japonesa,

A prancheta não pode esfriar

Autobiografia de Yoshihiro Tatsumi narra o nascimento do ‘gekigá’, movimento literário de mangás voltados a adultos

24out2021 | Edição #51

O termo japonês gekigá (劇뺌) é traduzido como “figuras dramáticas”, “retrato dramático” ou “desenho dramático”. No Japão dos anos 60, a palavra passou a ser utilizada por dois motivos: primeiro, para diferenciar o tradicional mangá — as “imagens extravagantes” ou “desenhos irresponsáveis”, mais atrelados ao cômico e ao infantil — de outro tipo de quadrinho, mais sério e mais voltado ao público adulto; segundo, para batizar um movimento.

A indústria de quadrinhos japonesa prosperou logo após a Segunda Guerra Mundial, durante a ocupação norte-americana. Em um período de recuperação econômica e de carência em várias indústrias, a maioria dos leitores não comprava as revistas e sim as alugava, por trocados, em locadoras. Havia inclusive a opção mais barata, de ler no local. Foi a época do início da carreira de Osamu Tezuka (1928-89), a maior referência da área.

Uma das marcas do livro é a maneira como Tatsumi tem os pés no chão quanto à carreira, feita de muito trabalho

Tezuka não estava sozinho e tinha admiradores que queriam seguir seus passos. Yoshihiro Tatsumi (1935-2015), residente em Osaka tal como o ídolo e poucos anos mais novo, era pré-adolescente quando começou a mandar suas primeiras tiras para revistas. Ele chegou a ser recebido por Tezuka, que já era um nome de muito respeito. O mais velho recomendou que o fã trabalhasse em histórias mais longas.

Esse é o ponto de partida de Vida à deriva, autobiografia de Tatsumi ganhadora de diversos prêmios internacionais, entre eles o Tezuka, o Angoulême e dois Eisner. A narrativa vai dos seus doze até os 25 anos — quando era o líder do movimento gekigá. Sem perder a admiração por Tezuka, Tatsumi estudou e adotou as referências cinematográficas que o ídolo começava a aplicar nos quadrinhos na época, somou influências da literatura, do teatro e de muitas conversas com colegas que também batalhavam na indústria nascente e chegou a uma síntese que desafiava quase tudo que se produzia de hq naquele momento. Não só no Japão, mas no mundo.

Trabalho, trabalho, trabalho

Em Vida à deriva, Tatsumi disfarça-se com o nome Hiroshi Katsumi. Seu irmão mais velho, chamado de Okimasa — na verdade Yoshioki Tatsumi (1933-2003), que também viria a fazer quadrinhos sob o pseudônimo Shoichi Sakurai —, é o primeiro interlocutor de Hiroshi/Yoshihiro.

Os dois travam longos papos sobre as histórias de que gostam, por que gostam delas e o que constitui a arte do mangá. As conversas se transformam em páginas, as páginas se transformam em propostas para editoras. Algumas propostas dão certo, outras não. Ao longo dos anos, os quadrinhos viram trabalho e ganha-pão, o trabalho vira profissão, a profissão vira um movimento.

Uma das marcas de Vida à deriva é a maneira como Tatsumi tem os pés no chão quanto à carreira. Ela é feita de trabalho, trabalho, trabalho, muito tempo sentado à frente de sua prancheta e muitas páginas de produção. Os editores não são apenas figuras inescrupulosas que querem passar a perna no jovem talento nem figuras paternas que vão ajudá-lo a crescer: existem de todos os tipos, e lidar com cada um faz parte do jogo.

Há momentos de fracasso, em que uma revista dá errado comercialmente ou leitores torcem o nariz para uma inovação estética — e isso não é uma derrota, mas um pequeno obstáculo que não pode deter a produção constante. Da mesma maneira, as pequenas e grandes vitórias são bem-vindas, mas ninguém estoura champanhe. Há mais trabalho pela frente, e a prancheta não pode esfriar.

Isso não quer dizer que não exista emoção na vida de um quadrinista. Tatsumi, porém, prefere reservá-la para as pessoas, para as interações. Enquanto sua carreira de mangaká decola, ele vivencia os primeiros amores, brigas com o irmão e com o pai, um momento de tensão existencial na hora de prestar vestibular e interações de todo tipo com as figuras do mercado de mangá, de editores maníacos a colegas que caem no alcoolismo. A vida acontece e emociona; o trabalho é o trabalho.

Em uma de suas primeiras produções pagas, Tatsumi recebe 15 mil ienes, e seu pai prontamente contextualiza: “É o salário de dois meses de um recém-formado na faculdade”. Há cenas com pilhas de dinheiro na mesa de um editor e cenas do autor fazendo contas de quanto vai receber por cada serviço do mês. Há sequências hilárias sobre a prática de “enlatar” os quadrinistas — as editoras trancavam os autores em um apartamento ou quarto de hotel até que cumprissem os prazos — e sobre fugir de funcionários da editora que vinham cobrar páginas. São momentos que pintam uma época de muito dinheiro no mercado do mangá, espaço propício para os autores inventarem e experimentarem.

Não que ser revolucionário seja fácil. Quando o autor resolve que quer fugir dos mangás tradicionais, que agradam aos editores e que pagam suas contas, e partir para o gekigá, é claro que a resistência é grande. Tatsumi também não é um herói confiante, que persevera apesar da adversidade. A biografia traz todos os seus momentos de dúvida e de hesitação e deixa claro que o gekigá não nasceu nem se firmou de uma hora para outra. Foi um processo de anos.

Quando Tatsumi diz que teve uma “vida à deriva” — é como ele classifica sua própria carreira em determinado momento da HQ —, o comentário só pode ser considerado autodepreciativo. Não combina com tudo que se viu até então nos anos de prancheta.

Frutos

A autobiografia se encerra antes de Tatsumi colher os maiores frutos do movimento gekigá. Ele e seus colegas acabaram de lançar um manifesto, há dissidências internas e o próprio Japão está passando por um período conturbado com a assinatura do novo Tratado de Segurança com os Estados Unidos. Depois virão a revista Garo, um dos marcos no quadrinho adulto japonês, e obras de renome internacional nesse segmento, como Lobo solitário, de Kazuo Koike (1936-2019) e Goseki Kojima (1928-2000), e Akira, de Katsuhiro Otomo. Fechando um ciclo, Osamu Tezuka seria influenciado pelo movimento gekigá e produziria quadrinhos adultos como Ayako (lançado por aqui pela Veneta em 2018), MW e Kirihito Sanka.

Há sequências hilárias sobre fugir de funcionários da editora que vinham cobrar páginas

Embora o leitor brasileiro conheça parte desses frutos, um dos problemas ao se publicar a autobiografia de Tatsumi por aqui é a falta de familiaridade com as obras do próprio, principalmente as que fundaram o gekigá. Com exceção de Mulheres (Zarabatana, 2007), não há outra publicação de Tatsumi em português. Vida à deriva mostra, por exemplo, alguns detalhes de Kuroi Fubuki (Nevasca negra), quadrinho de 1956 de Tatsumi que é considerado uma das pedras fundamentais do gekigá. Mas as inovações narrativas e estéticas que o material propôs ficam apenas sugeridas pelos personagens de Vida à deriva. É como ler uma biografia de Will Eisner sem ter se impressionado com uma história do personagem Spirit, e essa impressão faz falta.

No mais, a edição brasileira é servida de mais de quarenta páginas de notas da tradutora Drik Sada, que abastecem o leitor quanto às referências de quinze anos da história do Japão — e da história dos mangás —, que Tatsumi mobiliza na hq. É um cuidado primoroso, que soma à leitura.

Esse texto tem apoio da Japan House São Paulo.

Editoria com apoio Japan House São Paulo

Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.

Quem escreveu esse texto

Érico Assis

Tradutor e jornalista. É autor de Balões de Pensamento (ed. Balão Editorial).

Matéria publicada na edição impressa #51 em setembro de 2021.