Literatura japonesa,

Humor, terror e absurdo

O primeiro mangá de Shintaro Kago publicado no Brasil traz mescla de erotismo, grotesco e escatologia do gênero ero-guro

01jan2021 | Edição #41 jan.2021

O Japão tem a mais alta concentração de idosos do mundo. Uma pesquisa do governo divulgada em 2019 constatou que a proporção de idosos na população é de 28,4% e que, em 2030, esse número chegará a um terço do total. No arquipélago, os idosos têm até um feriado nacional, o Keiro no Hi, que é celebrado na terceira segunda-feira de setembro. Encontrar três gerações vivendo sob o mesmo teto é normal e esperado: a velhice é sinônimo de sabedoria e respeito. Mas não nos desenhos de Shintaro Kago.

O artista japonês chegou oficialmente ao Brasil em meados do ano passado, com a obra Dementia 21, primeiro mangá publicado pela editora Todavia. Na história, a jovem Yukie Sakai, a mais bem-sucedida cuidadora de idosos da empresa Green Net, é vítima de um plano de uma colega invejosa e passa a ser designada somente a clientes problemáticos. Entre os (aqui dezessete) “trabalhos de Hércules” que são ordenados a ela, estão situações como trocar as fraldas de um tokusatsu aposentado (um robô no estilo Jaspion), escapar de dentaduras assassinas e se perder entre os milhões de universos alternativos que podem existir entre as pelancas de uma das suas clientes. 

Dementia 21 foi originalmente publicado no Japão entre 2011 e 2013 em sete volumes, com 37 capítulos no total. A versão brasileira segue o padrão da americana, publicada em 2018 pela editora Fantagraphics, que divide a obra completa em duas grandes edições definitivas. Formado por capítulos autocontidos, com easter eggs espalhados aqui e acolá, o livro é um grande pesadelo, no qual o horror nunca é gratuito. Não é exagero dizer que cada uma das suas páginas arranca do leitor uma reação quase física.  

Ero-guro

O ero-guro nonsense, gênero de arte japonês que tem sua origem nos anos 1930, deixa claro desde a sua nomenclatura que se trata de uma categoria polêmica. Caracterizado por trazer à luz, de maneira abundante, explícita e com pitadas de erotismo, o grotesco e o escatológico, o gênero não tem tradição entre as editoras de histórias em quadrinhos brasileiras — talvez  o mais parecido com o estilo gore impresso por Shintaro Kago tenha sido Paraíso: o sorriso do vampiro, de Suehiro Maruo, publicado pela Conrad em 2006, ou Fragmentos do horror, de Junji Ito, que saiu pela DarkSide, em 2017. 

Nascido em Tóquio, em 1969, Shintaro publicou pela primeira vez uma história em quadrinhos em 1988 e não parou mais, entregando um trabalho consistente e prolixo que o alçou ao status de um dos mangakás mais cultuados da atualidade. Fora do Japão, ganhou os holofotes em 2008, quando um de seus desenhos foi escolhido para ilustrar a capa da revista Vice, nos Estados Unidos. À publicação, ele afirmou que a escolha pela temática escatológica foi aleatória, simplesmente porque não conhecia nenhum outro mangaká famoso que o fizesse com maestria.

Apesar da demora para chegar ao Brasil, os mais atentos já esbarraram pelo menos alguma vez com os desenhos do artista pelo Instagram, onde ele faz sucesso com ilustrações em cores vibrantes que seguem à risca o estilo ero-guro e conseguem ser ainda mais absurdas do que aquelas que estampam seus mangás. Esses desenhos foram compilados, em 2020, no livro Shintaro Kago Art Book, que reúne 277 ilustrações do artista — entre elas, as capas dos discos You’re Dead!, do Flying Lotus, e Bent Benevolence, do Offset. 

Dementia 21 é considerado um dos trabalhos menos perturbadores de Kago e, por isso, a sua obra mais acessível ao público não habituado com o gênero ali impresso. Aqui, apesar de existir, o nonsense é mais comedido e elegante. Além disso, as referências à cultura japonesa, como a relação de cuidado e dever com a população idosa em contraponto com a sede e ambição dos jovens em ser os melhores naquilo a que eles se propõem, já fazem parte do imaginário do Ocidente a respeito da terra do sol nascente, tornando as situações verossímeis apesar de absurdas. 

A edição brasileira traz ainda o mérito das notas de rodapé cuidadosamente apuradas pela tradutora Drik Sada. No livro, todas as personagens idosas são paródias de atores, atrizes, artistas e personalidades de grande fama no Japão, cuja maioria foge ao repertório estrangeiro. Drik sinaliza e destrincha cada uma delas, tornando o apelo humorístico desses nomes acessível até ao leitor mais desavisado. O apresentador de TV Kazuo Tokumitsu, o quadrinista Suihō Tagawa, o cantor Toshihiko Tahara ou a boy band SMAP: nenhum deles saiu ileso da caneta de Kago. 

Por mais emocional que isso possa soar, dificilmente Dementia 21 vai se parecer com algo que você já leu. Pensando em termos ocidentais, é como se Dalí e Magritte tivessem passado uma temporada no Japão e, em seguida, emendassem um estágio com os mestres da pornochanchada. 

Em comparação com os orientais, é como se Junji Ito “comesse palhacitos” e pegasse umas dicas de linguagem cinematográfica com Shinya Tsukamoto, depois de este ter feito uma maratona de David Cronenberg. Shintaro Kago está à solta e não pretende ir embora.

Este texto foi realizado com o apoio da Japan House São Paulo.

Editoria com apoio Japan House São Paulo

Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.

Quem escreveu esse texto

Clara Rellstab

É jornalista, roteirista e repórter do Uol.

Matéria publicada na edição impressa #41 jan.2021 em dezembro de 2020.