História,

As pessoas na sala de jantar

Com leve inspiração familiar, franco-brasileiro ilustra como a política separa parentes desde a Era Vargas

01mar2024

A história de uma família dividida por dois espectros políticos diferentes é um mote que ultrapassa as barreiras do tempo. Podia ter acontecido no último pleito eleitoral ou no que veio antes dele. Nas eleições de 2016, então, nem se fala. Na história de Matthias Lehmann, a desavença de ideais entre dois irmãos começa na década de 30, na Era Vargas, e termina nos anos 2000, após a restauração absoluta da democracia. E, vale ressaltar, a rinha entre os dois só acaba mesmo depois de um deles morrer.


Na HQ Chumbo, de Matthias Lehmann, a história política do Brasil se confunde com a trajetória familiar dos personagens

Chumbo, que chega ao Brasil neste março de 2024 pela editora Nemo, foi publicado pela primeira vez no ano passado, na França, onde fez boa reputação entre a crítica especializada. Ainda assim, ter setenta anos de história política brasileira recontada por um quadrinista francês é algo que pode torcer alguns narizes mais puristas no quesito “lugar de fala”. A preocupação cai por terra, no entanto, logo nos primeiros diálogos da sua robusta edição de quase quatrocentas páginas.

Matthias Lehmann é filho de uma brasileira com um francês. A mãe, que vive há mais de quarenta anos nos arredores de Paris, fez questão de educá-lo a respeito de seu país natal e de visitar o Brasil frequentemente para estreitar os laços dele com a família daqui. Não por acaso, a história se passa entre o interior de Minas Gerais e a capital Belo Horizonte, lugares que o autor retrata com intimidade tremenda, passando longe de qualquer estereótipo que um estrangeiro pudesse imprimir.


Quadro da HQ Chumbo [Divulgação]

No gibi, que se passa entre 1937 e 2005, a história política do Brasil se confunde com a trajetória da família Wallace, chefiada por Oswaldo, um empresário do ramo da mineração de manganês simpático às ideias da Ação Integralista e fixado na suposta ameaça comunista que pairava sobre o país. De pulso firme e totalitário, ele maltrata seus funcionários — especialmente aqueles sindicalizados —, oprime a esposa e educa à linha dura os dois filhos, Severino e Ramires.

Os irmãos, que têm apenas um ano de diferença na idade, não poderiam ser mais opostos. A discrepância que começa a florescer ainda quando meninos ganha força depois que crescem. Severino, boêmio, jornalista e depois escritor, era comunista durante a ditadura. Já Ramires, ao contrário, é reacionário, conservador e afeito aos militares. O argumento soa batido — a literatura, desde os tempos do Velho Testamento, tem histórias de irmãos dualistas para dar e vender. Mas a riqueza na construção da dupla e nos personagens secundários em seu entorno impede esse lugar-comum.

Decadências

A decadência de uma família burguesa ao longo de um século é retratada de maneira crua e, por vezes, devastadora ao longo dos quadrinhos. Lehmann não mede esforços ou grafismos para exibir o mais decadente que pode acontecer a seres humanos em situações extremas e também a forma mais bolorenta que a fraqueza de caráter e espírito podem engendrar em alguém. As diferenças de classe destacadas são implacáveis, o racismo está por toda parte e a pobreza é corrosiva. A luta política, entretanto, é onipresente.

Seja na força bruta aplicada pelo patriarca da família contra um líder sindical, na violência discreta das opiniões antiquadas de Ramires ou na luta expressa de Severino contra o sistema — ele chega a ser preso numa unidade do Dops —, o autor não apela para metáforas e sutilezas nas situações de crueldade dos algozes para que a leitura se torne menos desconfortável. Há violência explícita, sim, como houve na dura realidade fora das páginas.

O autor não apela para sutilezas. Há violência explícita, como houve na realidade fora das páginas

Ora mais Crumb, ora mais Spiegelman, Lehmann se mantém fiel ao realismo das situações e das personagens num desenho preto e branco extremamente evocativo. Também merece destaque a sua fidelidade à representação da arquitetura mineira, dos meios de comunicação brasileiros e da publicidade da época. É quase como uma busca por easter eggs — o leitor pode identificar comerciais e anúncios, seja numa banca de jornais, numa parede de um estabelecimento em que duas personagens se encontram ou na escolha do Guaraná Antarctica como bebida por um dos protagonistas.

Vale destacar ainda a perspicácia do franco-brasileiro em ilustrar a metamorfose da picaretagem do Brasil ao longo dos anos. Assunto vigente nas rodas de conversa e mesas de bar desde que a série Vale o escrito estreou no Globoplay, no ano passado, o jogo do bicho vira peça importante nos últimos capítulos do livro, e tem a sua história contada com um didatismo e irreverência que a produção televisiva ficou devendo aos telespectadores menos familiarizados com a temática.

Em algumas entrevistas para veículos estrangeiros, Lehmann contou que a ideia de escrever sobre as peculiaridades da política brasileira no século passado era algo que ele estava marinando há pelo menos quinze anos. Ele adiava colocar o plano em prática, entretanto, por julgar que a documentação histórica para que o livro fizesse jus à realidade fosse trabalhosa demais de se obter. A chegada da extrema direita brasileira ao poder fez com que ele entendesse que era hora de deixar a moleza de lado e, literalmente, desenhar para quem parecia não entender a gravidade de um potencial novo período de ditadura.

Bonecas russas

A história de Chumbo, diz Lehmann, tem leve inspiração na sua própria família mineira e em um tio que é reconhecido para além do círculo íntimo. Ele é sobrinho de Roberto Drummond, o jornalista, escritor e comunista mineiro autor de Hilda Furacão, que inspirou alguns traços de Severino. A homenagem ao tio também se estende ao estilo do texto, uma vez que esse jogo de autoficção familiar, que Lehmann classifica carinhosamente como “bonecas russas”, é um recurso utilizado pelo próprio Drummond em algumas de suas obras.

No texto de encerramento da HQ, o autor relembra que, quando era pequeno, na volta de uma das viagens anuais que fazia para visitar a família em Belo Horizonte, o tio Roberto desapareceu repentinamente dos olhos do restante da família. Ao voltar do seu sumiço misterioso, confessou que tinha ido conferir se seu livro já estava sendo vendido na livraria do aeroporto. “Todos zombaram gentilmente de sua megalomania, menos eu”, lembra. Na próxima chegada a Minas Gerais, antes mesmo de deixar Confins em direção à capital, Matthias Lehmann tem um destino certo.

Quem escreveu esse texto

Clara Rellstab

É jornalista, roteirista e repórter do Uol.