Literatura estrangeira,

Um mundo repleto de ecos

Protagonistas femininas de Robert Musil incorporam as ideias e os sentimentos artísticos do começo do século 20

01set2019 | Edição #26 set.2019

O nome de Robert Musil é de imediato ligado ao seu grande romance inacabado O homem sem qualidades, publicado em partes a partir de 1930.Temos agora a oportunidade de conhecer melhor uma parte da obra de Musil até então desconhecida: Uniões, publicado pela Perspectiva com organização, ensaios e notas de Kathrin Rosenfield e que traz dois contos longos de Musil, “A perfeição do amor” e “A tentação da quieta Verônica”.

Musil nasceu em 1880 em uma família burguesa do sul da Áustria, falecendo em 1942 aos 61 anos. Sua trajetória foi marcada pela ascensão e queda do Império Austro-Húngaro, algo que o posiciona em um campo de afetos e perspectivas compartilhado com artistas como Thomas Mann, Joseph Roth, Stefan Zweig e Karl Kraus.

Depois da publicação de O jovem Törless, em 1906, que levou Musil à fama artística repentina, o autor começou a aprimorar seu estilo na elaboração de uma série de contos. Eles foram publicados em revistas literárias como a Hyperion, editada pelo dramaturgo Carl Sternheim junto com Franz Blei, e a Pan, na qual também publicou alguns ensaios. Musil reuniu dois contos desse período e lançou o volume Uniões em 1911, mesmo ano de seu casamento com Martha Marcovaldi, sete anos mais velha, divorciada e com dois filhos.

Claudine, a protagonista do primeiro conto, “A perfeição do amor”, é uma espécie de elaboração ficcional de Martha na vida de Musil e da infidelidade dela no período do noivado. Nessa história sobre traição, Musil costurou uma série de temas e procedimentos determinantes para essa fase da carreira: a relação entre biográfico e ficcional como uma garantia de autenticidade e força estética; um estilo de escrita exaltado que buscou dar conta do registro de estados mentais alterados das personagens; o contato com o discurso psicanalítico e a possibilidade de reinvenção da dimensão psicológica; o desejo de reinvenção do tema gasto do adultério feminino.

Claudine e Verônica são corporificações de intensos debates de ideias, ideologias e sentimentos que ocupavam Musil e seus próximos. A arte europeia da primeira década do século 20 é construída em torno de noções como “êxtase”, “intensidade”, “misticismo” e “revelação” — podemos pensar, por exemplo, no Manifesto Futurista, de 1909.

Ainda que a guerra estivesse poucos anos à frente, o campo de batalha nesse momento eram a mente e a subjetividade: “Como um riacho que murmura”, escreve sobre Claudine, “aquele turbilhão da vida de uma mulher infeliz, comum e infiel vinha e partia, porém a sensação que lhe vinha era apenas a de estar sentada, imóvel e perdida em pensamentos. Era uma consciência, nunca muito nítida, de uma intensa interioridade que conferia aquela derradeira reserva e segurança à sua impulsiva entrega a outras criaturas”.

Sismógrafo

Nos dois contos de Uniões, os princípios da narração — ordem, composição, personagens — são transtornados para mostrar episódios espirituais que vão além das palavras. Em “A tentação da quieta Verônica”, a protagonista relata continuamente a flutuação do seu “eu” em busca de algo que ela chama  de “o todo”, algo que, no fim, escapa a toda denominação: “Um mundo todo película, repleto de ecos, e a tudo que ela fazia se seguia, naquele mundo, uma quietude, e tudo o que pensava deslizava perpetuamente, como sussurros em tortuosas galerias”. O único momento no qual essa busca parece ter fim é quando Verônica estabelece uma união espiritual com um homem que ela acredita estar morto.

Claudine, por sua vez, é arrancada de sua rede de relações por uma viagem, experimentando de saída uma perda de si e um reencontro em uma realidade complexa, inesperada e, por isso, assustadora. Nessa situação de desamparo, ela se refugia no adultério, uma via tortuosa que a leva, por fim, em direção ao mais alto grau de união com seu marido. Nos dois contos, Musil recusou o princípio de causalidade que caracterizava o romance psicológico da época e seguiu de forma implacável um pensamento: a ideia do isolamento do “eu” se impõe sobre toda possibilidade de continuidade baseada em um ponto de vista fixo — seja a nação, o casamento ou a língua.

Para Musil, nas palavras de Kathrin Rosenfield, a “literatura deve ser um sismógrafo que filtra o imaginário afetivo nos seus erros e acertos e usa o pensamento para corrigi-los”, contribuindo para uma saúde da mente em uma “sociedade desnorteada pelo excesso caótico de informação”.

Esse conjunto de reflexões de Musil só adquire o sentido nuançado que deve ter quando se tem a oportunidade de ler Uniões em contraste com o restante de sua produção. Essa obra é o elo entre o período inicial de O jovem Törless — com as experiências de Musil em um internato militar — e o amadurecimento estético e político representado por O homem sem qualidades. Como escreve a organizadora do volume, “a mobilidade emocional e intelectual das heroínas Claudine e Verônica já anuncia a impressionante riqueza sentimental que o público admira na obra musiliana. Ela é o resultado de experimentos e reflexões com inúmeros estilos de diversas linhagens literárias (e não literárias)”.

Uniões funciona em uma série de camadas de sentido interligadas. Remete não só à construção de mundo e de estilo de Musil, mas a um denso campo de experimentações artísticas que ecoa ainda hoje, abarcando obras como as de Joyce, Hermann Broch, Virginia Woolf, Gertrude Stein e tantos outros. Por vezes, como é o caso aqui, a qualidade de uma obra está também em sua capacidade de levar a outros lugares, expandindo seu horizonte de atuação e o horizonte de reflexão do leitor.

Quem escreveu esse texto

Kelvin Falcão Klein

Professor da Unirio, é autor de Cartografias da disputa: entre literatura e filosofia (Editora UFPR).

Matéria publicada na edição impressa #26 set.2019 em agosto de 2019.