Polemista comprometido

Literatura,

Polemista comprometido

Entrevistas e artigos reunidos de Thomas Bernhard mostram o escritor austríaco em toda sua verve, sobretudo quando reagia às palavras dos outros

14fev2025

Acaba de sair no Brasil, com tradução de Sergio Tellaroli, Na pista da verdade, livro que reúne “discursos, cartas, entrevistas e artigos” do escritor austríaco Thomas Bernhard (1931-89). Esse amplo percurso, que abarca quatro décadas da produção do autor, mostra Bernhard em toda sua verve de polemista, sempre oscilante entre comédia e tragédia: enquanto em um texto ele diz ter perdido tempo em Viena pois “foi obrigado a conviver com os habitantes da cidade”, em outro afirma que novos autores não precisam de bolsas ou prêmios, mas “do desterro de suas almas” e  “do desconsolo cotidiano”.

Para aproveitar Na pista da verdade ao máximo, é necessário conhecer a obra de Bernhard (publicada em sua maioria pela Companhia das Letras) de uma forma geral. Não apenas seus romances curtos e relativamente acessíveis, como O náufrago, Sim e Derrubar árvores, mas também o longo e exigente ciclo autobiográfico de Origem (cinco relatos publicados entre 1975 e 1982: “A causa”, “O porão”, “A respiração”, “O frio” e “Uma criança”) e o exaustivo romance Extinção, provavelmente sua obra-prima.

O leitor familiarizado com esse lado da produção de Bernhard, contudo, vai notar em Na pista da verdade (Todavia) que o próprio autor deu bem mais atenção às suas criações para o teatro. Boa parte das polêmicas que aparecem no livro tem como foco a dramaturgia de Bernhard, como vários dos títulos deixam claro: “Salzburgo espera por uma peça de teatro”, “O teatro no Tonhof”, “Não sou um autor de escândalos”, entre outros.

Dar musicalidade à língua era uma obsessão do autor, que um dia sonhou ser cantor de ópera

Ao longo dos anos, em vários momentos, Bernhard parece se apresentar mais como dramaturgo do que romancista — ele, inclusive, recusa e estranha este último rótulo em uma das entrevistas incluídas no livro. É possível argumentar que mesmo essa posição razoavelmente assegurada — Thomas Bernhard como autor de peças de teatro — é questionada pelo escritor, que tinha como postura básica discordar de tudo e de todos (até mesmo dele próprio).

Nos momentos em que parece recusar tanto a etiqueta de dramaturgo quanto a de romancista, Bernhard aparece como um estilista: alguém que se preocupa com a língua na qual escreve. “A língua está em primeiro plano”, diz em entrevista a Brigitte Hofer, juízo que ganha diversas roupagens ao longo do tempo. Por outro lado, ele também diz (em entrevista a Asta Scheib) que o alemão “é uma língua engessada, pesada”, ou seja, “uma língua horrorosa, que mata tudo quanto é leve e maravilhoso. Pode-se apenas sublimá-la com um ritmo capaz de dar-lhe musicalidade”.

Essa é outra obsessão, outra insistência maníaca de Bernhard — o ritmo, a musicalidade. No início da adolescência, quando estudou música, Bernhard tinha o projeto de ser cantor de ópera. “Eu estudei no Mozarteum [escola de música em Salzburgo], matérias teóricas, estética musical”, conta em entrevista a Viktor Suchy.

Tocávamos instrumentos também, mas, na verdade, isso era menos importante para mim. Terminei o curso e parei com tudo, só continuei cantando, em igrejas, por exemplo, Bach e coisas assim. O que faço até hoje.

É o próprio Bernhard quem insiste, ao longo dos fragmentos heterogêneos de Na pista da verdade, que a literatura, para ele, é um desdobramento da música. Disso decorre, por exemplo, seu livro O imitador de vozes.

Desprezo

Bernhard tem plena consciência de que não é o único a utilizar a língua alemã, e isso o incomoda profundamente. Tem desprezo por todos aqueles que usam a língua de forma espúria, desonesta e oportunista, como, para ele, fazem políticos, jornalistas e outros escritores.

Quando um editor da revista alemã Der Spiegel pergunta a ele se “lê tudo o que vem da Áustria”, Bernhard responde que não, porque “ficaria louco”, “precisaria ler dia e noite, e isso só é possível quando se é estúpido”. Prevendo que tudo ficaria ainda mais virulento caso insistisse, o jornalista o compara com outros escritores austríacos, como Peter Handke, e pergunta se há, de fato, “coisas em comum” entre eles. “Semelhança nenhuma”, diz Bernhard, “Handke é um rapaz inteligente, e eu não gostaria de ter escrito nenhum de seus livros, mas sim todos os meus”.

Algo surpreendente na leitura de Na pista da verdade é constatar quão pouco Bernhard fala e escreve sobre literatura e suas próprias leituras. Abundam invectivas contra diretores de teatro, ministros de Finanças, embaixadores e jornalistas, personagens tão obscuros e insignificantes que, vistos do Brasil de 2025, dificilmente justificam o papel e a tinta gastos com eles. Um efeito colateral da aparição desses coadjuvantes é tornar a leitura, em alguns momentos, um pouco maçante. Sabendo da enorme devoção que Bernhard dedicava a Ludwig Wittgenstein, por exemplo, é frustrante ver o quão pouco ele aparece em seus comentários — fica nítido que o foco do desejo de Bernhard estava na crítica, não no elogio.

Numa entrevista a Werner Wögerbauer, Bernhard é provocado a falar sobre seus xingamentos a outros escritores. “São tolices. Quase todos os escritores são oportunistas”, responde, sem esclarecer se faz parte do grupo. E então, novamente atiçado com uma comparação a Peter Handke, Bernhard muda de assunto, falando de como é “insuportável” que todos os jornais “só falam de Thomas Mann”, “que morreu faz mais de trinta anos”: “um sujeito todo teso, o típico pequeno-burguês alemão”, um escritor “horrível, sem nenhum espírito, que escreveu apenas para pequeno-burgueses”, criador de um ambiente “desprovido de intelecto e burro”, sem falar na “porcaria que ele escreveu sobre política e essas coisas”.

Na pista da verdade pode ser lido como experimento no campo da biografia: acompanhamos Bernhard ao longo de sua carreira, de 1954 a 1989, não só a partir das palavras — para isso servem os romances, as peças e os poemas —, mas de suas reações às palavras alheias. Até 1967, ele pode dizer que é “na verdade muito diferente do que se lê em meus trabalhos”, anunciando uma cisão entre a máscara autoimposta e uma possível “essência” escondida. Aos poucos essa disposição parece enfraquecer, dada a recorrência de polêmicas e processos judiciais. Até que, em 1979, ele afirma:

Volta e meia, eu mesmo me espanto com a quantidade de vidas que vemos como nossas e que, de fato, possuem semelhanças entre si, mas, na verdade, são como personagens que têm tanto ou tão pouco a ver conosco como outras vidas.

Bernhard morreu faz mais de trinta anos e ainda falamos dele — certamente por conta da ambivalência de suas posturas, mas também pela intensidade do seu comprometimento com o fazer literário.

Quem escreveu esse texto

Kelvin Falcão Klein

Professor da Unirio, é autor de Cartografias da disputa: entre literatura e filosofia (Editora UFPR).

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