Encontro de Leituras,

A vida em doses homeopáticas

Coletânea de textos de José Luís Peixoto publicados na imprensa ao longo de dez anos é exemplo eloquente das possibilidades da crônica

01nov2024 • Atualizado em: 31out2024 | Edição #87 nov
O escritor português José Luís Peixoto (Patrícia Santos Pinto/Divulgação)

O escritor português José Luís Peixoto já testou o terreno de vários gêneros literários — publicou romances, poemas, relatos de viagem, contos, textos infantojuvenis —, uma intensidade que foi recompensada com os prêmios José Saramago (por seu romance de estreia, Nenhum olhar) e Oceanos (pelo romance Galveias). Com a progressão de sua trajetória, era inevitável que o autor fosse requisitado para se fazer presente na mídia com peças breves e efêmeras sobre temas diversos, como é o caso da crônica.

Abraço, livro de Peixoto lançado agora no Brasil (a edição original é de 2011), é uma coletânea com 162 textos, publicados em veículos como o Jornal de Letras, Rodapé, Time Out Lisboa e a revista Visão ao longo de dez anos. Como não há um fio condutor ou tema central, o leitor acompanha aquilo que, de forma errática, passou diante dos olhos e da memória do autor: amores e amizades, livrarias, filmes vistos no cinema, Alzheimer, paisagens da infância, Barack Obama, idas à praia, reflexões sobre canetas esferográficas, laços familiares, helicópteros e um concerto de Kate (sic) Perry em Lisboa.

A crônica, em geral, é um tipo de texto que lida com o específico, separando cenas e imagens do tecido amplo do cotidiano, ressaltando aquilo que há de atípico ou curioso na experiência geral dos dias. Isso ocorre porque, desde o nome, a crônica tem relação direta com o tempo e com os mistérios de sua abstração incontornável — basta pensar em Cronos, personificação do tempo eterno na mitologia grega. A crônica guarda também em seu dna algo das experimentações ensaísticas do filósofo francês Michel de Montaigne, que não apenas tenta dar conta dos fatos e eventos excepcionais (ou que despertam a curiosidade daquele que escreve), mas o faz sempre a partir da perspectiva subjetiva, da posição única e irrepetível do “cronista” (ou “ensaísta”) responsável pelo relato.

Nesse sentido, Abraço é um exemplo eloquente das possibilidades da crônica, com sua ênfase em momentos de passagem ou transformação, ou ainda com a recorrente evocação da infância. “Eu, que fui filho, sou agora pai”, escreve o autor, unindo duas pontas da vida no arranjo efêmero do texto breve, que ganha força na sobreposição dessas duas condições. Mais adiante, surge a infância e sua carga inesgotável de detalhes reveladores, que parecem se tornar mais vivos quanto maior a distância. “Nós tínhamos cães, gatos, coelhos, galinhas, patos, pombos, ovelhas, porcos e vacas”, escreve o autor, completando: “Tínhamos grilos em gaiolas e cágados escondidos debaixo dos sofás. A nossa vida era inseparável da vida deles. Era simples, dura e bonita”. A infância volta com frequência nos textos de Abraço, mostrando a força do tema para a construção de narrativas que oscilam entre passado e presente para, no fim, embaralhá-los poeticamente.

A ênfase é em momentos de passagem e transformação ou na recorrente evocação da infância

A enumeração — como a lista dos animais — é uma ferramenta essencial à crônica, pois ajuda não só a evocar a variedade dos elementos do cotidiano, mas também a evidenciar a capacidade de observação do cronista. Trata-se, mais uma vez, do jogo entre o geral e o particular, entre a sociedade e o indivíduo. A conexão intrínseca da crônica com a imprensa — e, consequentemente, com sua vertiginosa renovação diária — faz com que seus truques habituais sejam diluídos na memória dos leitores. Quando os textos são aproximados em coletânea, como é o caso de Abraço, essa diluição desaparece, revelando padrões e repetições. Peixoto se vale abundantemente das enumerações:

Nunca serei campeão de xadrez, nunca registrarei uma patente, nunca conduzirei uma Harley-Davidson, nunca invadirei um pequeno país, nunca venderei relógios roubados aos transeuntes da Rua Augusta, nunca serei protagonista de um filme de Hollywood, nunca escalarei o monte Evereste, nunca farei uma colcha de renda, nunca apresentarei um concurso de televisão.

Ou ainda no relato sobre o período no qual o autor foi professor em Cabo Verde, com turmas de, pelo menos, quarenta alunos, que Peixoto levou meses para saber os nomes, a maioria bastante diferente do que estava habituado, como conta:

Muitos nomes de jogadores de futebol dos anos oitenta (Chalana, Jordão, Zico), alguns nomes de políticos (Lenine, Kennedy), nomes mal escritos de figuras conhecidas (Leidy Diana, Elton Djone), nomes masculinos acabados em ‘son’ (Gerson, Edmilson, Vanilson, Fredson, Adilson), nomes arcaicos (Onivalda, Hermengarda, Aguinaldo), nomes da mitologia e da antiguidade grega (Eurídice, Péricles, Euclides) e outros nomes incomuns (Itália, Leão).

Mas o arsenal de Abraço não é composto apenas de enumeração: encontramos frases de efeito, pérolas intercambiáveis de sabedoria que o narrador encontra depois de refletir sobre os mais variados temas (“existe paz porque o futuro é tão vago que nada o pode desviar da sua rota de incerteza”; “As emoções moldam o subconsciente. O sarcasmo não é superioridade. Os maus sentimentos não são inteligência”); encontramos crônicas elaboradas a partir da descrição dos artefatos que o autor tem ao seu redor (“Objetos que tenho em cima da minha mesa”, “Sou apegado aos objetos que me dão. Olho para eles e sinto a generosidade, vejo a melhor imagem da pessoa que mos ofereceu”) ou, simplesmente, daquilo que aparece nesses objetos (“Olho para o relógio do microondas e são 03:17”, “A minha mala é diferente de todas as outras”), por mais que, às vezes, a epifania tenha que ser explicada e mastigada (“Uma cicatriz no vidro: encontro simbolismo nessa imagem quotidiana”).

Tempo ao tempo

É provável que Abraço funcione melhor quando o leitor dá “tempo ao tempo”, uma expressão que, de resto, funciona muito bem para definir a crônica. É um livro a ser usufruído em doses homeopáticas, de modo a valorizar o conjunto de seus recursos limitados. Uma coisa, no entanto, é inegável: o livro de Peixoto opera uma muito bem-vinda retomada da crônica, o que talvez possa levar o leitor em direção aos gigantes do gênero que temos do lado de cá, como Rubem Braga, Vinicius de Moraes, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Stanislaw Ponte Preta e tantos outros.

Quem escreveu esse texto

Kelvin Falcão Klein

Professor da Unirio, é autor de Cartografias da disputa: entre literatura e filosofia (Editora UFPR).

Matéria publicada na edição impressa #87 nov em novembro de 2024. Com o título “A vida em doses homeopáticas”

Para ler este texto, é preciso assinar a Quatro Cinco Um

Chegou a hora de
fazer a sua assinatura

Escolha como você quer ler a Quatro Cinco Um.

Então é Natal... e a Quatro Cinco Um tem um presente pra você!

Faça uma assinatura anual com até 56% de desconto e ganhe uma ecobag exclusiva.