Literatura estrangeira,
Gritos de liberdade
Em novo romance, escritor afro-americano narra a prisão de um adolescente negro nos anos 1960 para discutir o racismo no atual contexto político
01ago2019 | Edição #25 ago.2019Quando lançou The Underground Railroad: os caminhos para a liberdade (Harper Collins), em 2016, Colson Whitehead já era um autor respeitado no meio literário. Sua escrita engenhosa e com estilo imprevisível já havia lhe rendido bons frutos, mas também parecia tê-lo inserido em um lugar-comum. Embora os críticos dissessem que o escritor já havia saltado de um livro sobre apocalipse zumbi (Zone One) para uma sátira sobre a indústria de band-aids (Apex Hides the Hurt: A Novel) com maestria, ele ainda não se sentia preparado para escrever a história que o intrigava desde a infância.
Foi na escola que conheceu as ferrovias subterrâneas, expressão metafórica para as rotas de liberdade percorridas por negros escravizados nos Estados Unidos do século 19. Com The Underground Railroad, ganhou um National Book Award e um Pulitzer de literatura. O romance virou livro de cabeceira de Barack Obama, integrou o clube do livro da apresentadora Oprah Winfrey e chegou a vender 1 milhão de cópias. Tornara-se um fenômeno literário.
Enquanto lia O reformatório Nickel, seu novo romance, eu me questionava sobre o que teria motivado o autor a escrever sobre um caso baseado na realidade. De certa forma, reluto em chamá-lo — como fez o The New York Times — de história de terror. Depois do lançamento do filme Corra! (2017), a experiência diária de racismo foi comparada a um filme de terror para as pessoas negras. Não discordo. Não quero é dar traços de fantasmagoria a algo que não só é real, como é parte estruturante das sociedades brasileira e norte-americana.
Como uma pessoa negra que também escreve, pensei no autor. Depois de se debruçar sobre o tema da escravidão, será que esse escritor negro, nascido no Brooklyn em 1969, teria se sentido cobrado a continuar escrevendo sobre racismo? Depois de ler entrevistas recentes suas, imagino que Whitehead imprimiu, em seus dois últimos romances, questões que o perturbavam fortemente.
A história de O reformatório Nickel surgiu antes de ter começado a escrever The Underground Railroad. Em 2014, ele descobriu a existência da escola Dozier, um reformatório para jovens em conflito com a lei, quando leu reportagens sobre o que se passava lá. Ficou chocado. Em meio a relatos de trabalho escravo, tortura e abusos sexuais, havia a estimativa de que mais de cem jovens foram assassinados lá.
Whitehead disse ter percebido a urgência de se voltar mais uma vez para as questões raciais depois das eleições de 2016. De The Underground Railroad — uma história com ares de realismo mágico sobre a liberdade durante a escravidão —, o autor salta um século para uma realidade que parece mais próxima do leitor.
Humanidade
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“Até na morte os garotos eram um problema.” Essa é a primeira frase de O reformatório Nickel. No prólogo, um dos personagens vê no noticiário a descoberta de um cemitério secreto no terreno daquilo que deveria ser uma escola. A voz do repórter na televisão não só provoca o personagem como o remete ao seu próprio passado.
A partir daí, Whitehead narra a história de dois meninos que se conheceram no Nickel: Elwood e Turner. O primeiro ia se matricular numa faculdade negra, falava “como um universitário branco” e garimpava coisas nos livros “como quem procura urânio para uma bomba atômica pessoal”. Criado pela avó, ele era o negro promissor, aquele que tinha potencial para causar mais preocupação do que um simples assaltante. Vai parar no Nickel por um erro judicial.
Turner, por outro lado, estava em sua segunda estada no reformatório. A esperteza e a personalidade aventureira eram frutos de uma vida de orfandade, em que estava sob custódia do Estado. Preferia as ruas.
A trama se desenrola na Flórida em meio à luta por direitos civis, nos anos 1960, e é conduzida pelo embate entre os dois adolescentes. Enquanto Elwood se fiava nas palavras de Martin Luther King e tentava responder ao ódio e à injustiça com amor, Turner classificava esse idealismo como ingênuo, bobo até. Para Turner, que havia sido desumanizado desde a primeira infância, não havia por que fazer da “humanidade uma carreira”, como pregava o reverendo. Permanecer vivo já lhe parecia o bastante.
O reformatório recebia adolescentes negros e brancos e, obedecendo à lei da época, os segregava espacialmente. Separados, não só a diferença de tratamento baseada nas relações raciais se tornava explícita, mas também a percepção dos meninos sobre o próprio reformatório. Os hematomas que surgiam na pele dos brancos depois das surras eram diferentes dos que coloriam os corpos dos meninos negros. Os brancos chamavam o lugar onde eram espancados de Fábrica de Sorvete, porque saíam de lá com machucados de todas as cores. Sem eufemismos, os negros o nomearam Casa Branca: “A Casa Branca aplicava a lei e todo mundo obedecia”.
Para nós, brasileiros, tanto o senso de urgência de Whitehead como a narrativa de O reformatório Nickel soam familiares. As eleições de 2018 não só confirmaram como explicitaram o racismo à brasileira que nada tem de velado. Tivemos um presidenciável que foi aplaudido ao comparar populações quilombolas a gado. Em 2016, foram denunciadas sessões de tortura e espancamento coletivo em uma unidade da Fundação Casa, em São Paulo. Segundo as denúncias, as adolescentes foram agredidas, nuas, por funcionários do lugar. Houve relatos de costelas quebradas e até suspeita de tímpano lesado. Casos semelhantes continuam a se repetir.
Talvez O reformatório Nickel realmente tivesse de ser escrito na sequência de The Underground Railroad para mostrar como os resquícios da escravidão perduram ao longo dos séculos. Os aparatos de repressão do Estado continuam a punir com violência os mesmos corpos. Nos EUA, a taxa de assassinato de negros é oito vezes maior do que a de brancos. No Brasil, a cada 23 minutos morre um jovem negro.
A escrita de Whitehead é mais que um grito de socorro: diz muito mais sobre liberdade do que sobre violência. Martin Luther King dá o tom: “Estejam certos de que vamos esgotá-los com nossa capacidade de sofrer, e de que, um dia, vamos conquistar nossa liberdade”. É sobre resistir. A postura corajosa de Elwood reafirma a busca pela liberdade. Os dois últimos livros desse autor, juntos, alertam: não podemos retroceder.
Matéria publicada na edição impressa #25 ago.2019 em julho de 2019.
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