Crítica Literária,
Além do horizonte crítico
As visões de Antonio Candido, Álvaro Lins e Afrânio Coutinho e a lacuna de estudos sobre obras fora do cânone
01abr2023 | Edição #68A crítica literária é uma necessidade. Quanto a isso, ouso dizer, todos os estudiosos concordam. É uma forma de manter o ofício vivo, seja pelo tom personalista (e por que não professoral) de Álvaro Lins — “o crítico é senão um homem que sabe ler e ensina os outros a ler” —, seja pela dialética do pensamento de Antonio Candido, seja pela estética de Afrânio Coutinho.
No Brasil, muitos são os nomes recorrentes em estudos literários: Flora Süssekind, Massaud Moisés, Olga Savary, Sílvio Romero, Walnice Nogueira Galvão; além dos incontáveis casos de escritores-críticos, como José de Alencar, Machado de Assis, Manuel Bandeira e Guimarães Rosa — para Rosa, o verdadeiro crítico trabalha em conjunto com o autor, disposto a completar a obra e a divulgá-la.
Mas é entre os nascidos na década de 1910 — Coutinho, Candido e Lins — que resolvo aqui mergulhar; porque diferem entre si em suas abordagens e pelo impacto que provocaram nas gerações posteriores.
1. Dialética
Foi o Bruxo do Cosme Velho quem falou: a literatura deve romper com o predomínio luso. Ao publicar o ensaio-manifesto “Instinto de nacionalidade” em 1873, Machado de Assis redirecionou os estudos literários. Se o Barroco e o Neoclássico viam a literatura como um meio de catequização, a visão defendida por Machado constrói uma dependência entre a literatura e a história, tomando o ofício do escritor como reflexo das atividades humanas e fenômeno histórico.
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De forma similar e diametralmente oposta está o trabalho daquele considerado nosso primeiro crítico literário, Silvio Romero, autor da monumental História da literatura brasileira, publicada na década de 1880. O escritor sergipano também era devoto de uma perspectiva histórico-sociológica da literatura, mas tinha por base as teorias deterministas de Comte, Taine, Buckle, Haeckel, Darwin e Spencer. Grosso modo, o racismo científico.
Romero, para Antonio Candido, não tinha um conceito propriamente estético de crítica, adotando em vez disso fatores extrínsecos, extraliterários — o racismo — como critérios para explicar a literatura. O método do carioca, no entanto, era outro: o externo se tornaria interno e a crítica deixaria de ser sociológica para ser apenas crítica.
O pensamento de Candido se move no interior de dois pólos: o imperialismo do fator externo determinista — o de Romero, reijeitado por Machado — e a literatura onívora, que ocupa todo o espaço natural. Se no primeiro polo a literatura é devorada pelo social, no segundo acontece o inverso. Para ele, o social estaria já incorporado à substância da literatura. Sua dialética equilibra o impulso contrário de diferenciação e de propagação das distinções onde antes não havia nenhuma. A literatura deixa de ser privilegiada, torna-se um campo entre outros enquanto se volta, simultaneamente, “sobre si mesma, especificando-se”.
O modelo literário consumado por Machado é projetado retrospectivamente por Candido, programando a crítica e a literatura por vir
No célebre Formação da literatura brasileira, Candido destrincha alguns dos pilares que norteiam o seu fazer crítico. Para ele, a história da literatura tem como pano de fundo a suplantação das populações indígenas e africanas — como se elas tivessem de ser superadas para que o Estado-nação alcançasse sua emancipação — o que aponta para a sua radical “má consciência”, sua configuração estruturalmente ideológica e seu aprisionamento em uma representação excludente. Contra a má-formação da cultura brasileira e o mimetismo dos modelos portugueses, Candido propõe uma formação da cultura, seu estabelecimento orgânico, sua relevância para o Brasil real, como antídoto contra a frivolidade de uma cultura colonial emprestada e dependente.
Há, no entanto, temas que Candido não alcança: entre os autores analisados por ele em Formação não há sequer uma mulher, Machado é lido praticamente como um escritor “branco”, sem que sua identidade racial seja problematizada, e os indígenas não são tidos como populações nativas ou originárias. Antonio Candido era um homem branco de seu tempo, o que pode até decepcionar, mas não apequena sua contribuição para a literatura.
Segundo o professor João Camillo Penna, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é possível comparar o projeto crítico candidiano ao gesto realizado pelo romance de Machado, nosso principal — senão maior — escritor. Se Machado sublima os indígenas como um “tipo nacional”, um estereótipo de brasilidade, Candido desloca o olhar do malandro como um “tipo nacional” para uma forma de um grupo social particular se manifestar. “Trata-se de um procedimento estritamente ideológico”, escreve Penna, “por meio do qual uma sociedade fundamentalmente problemática pode ser compensada com uma solução estética, escondendo assim a raiz desse ‘mundo sem culpa’”. Assim, o modelo literário consumado por Machado é projetado retrospectivamente por Candido sobre todo o processo, programando a crítica e a literatura por vir.
2. Impressionismo
A crítica é, para Álvaro Lins, uma forma de construir alicerces e levantar muros para futuras construções. O ofício dependeria, assim, de que o crítico assumisse o papel de um “leitor inteligente/erudito” e que compartilhasse suas experiências e impressões sobre a obra. Daí surge a corrente impressionista no Brasil — a britânica Virginia Woolf e o francês Anatole France são alguns de seus expoentes estrangeiros.
O trabalho crítico de Álvaro Lins se deu, sobretudo, entre os anos de 1941 e 1963, período em que assumiu a coluna de crítica literária no jornal carioca Correio da Manhã. Além de recensear novos autores, o crítico pernambucano foi responsável por proclamar a derrocada ou a ascensão de um escritor, o que aconteceu com a publicação de Sagarana, de Guimarães Rosa. Ao saudar a obra em sua coluna, sob o título “Uma grande estreia”, Lins influenciou o aumento significativo de vendas do livro e anunciou em tom profético a carreira brilhante que Rosa estava prestes a trilhar.
Além de escrever textos críticos que abordavam e interpretavam as obras literárias, Lins também compilou uma série de textos cuja função principal era refletir sobre os domínios da própria crítica literária, selecionados por Eduardo César Maia no livro Sobre crítica e críticos. Para Flávia Aparecida Hodas, doutora em literatura pela Universidade Estadual de Londrina, o trabalho de Lins se destaca não só por sua erudição, mas por sua sensibilidade, o que fez com que ele somasse um séquito de leitores às suas colunas.
Quando se dedica a comentar o trabalho do português Fidelino de Figueiredo em artigo de 1941, Lins expõe e concebe seu próprio modelo de crítica literária. “Ao contrário de uma crítica que viva em função da expressão subjetiva e das experiências hedonistas originadas no decorrer da leitura, Álvaro Lins observa o seu próprio trabalho crítico como uma fusão entre o posicionamento subjetivo, portanto, impressionista, e uma perspectiva objetiva, próxima a uma análise mais tecnicista”, escreve Hodas.
3. Estética
Há quem atribua ao Le Mercure Galant, periódico francês de fins do século 17, as origens da crítica literária dita impressionista na imprensa brasileira. Inegável é o fato de que ela estava destinada a fazer carreira. O professor Roberto Acízelo de Souza, do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, guarda muitas ressalvas à forma assumida pelo ofício na contemporaneidade. Para ele, a publicidade de livros precede a discussão de seu conteúdo. “Hoje, chama a atenção seu vezo de sentenciar autores e obras de modo explícito e peremptório, quase sempre a partir de lastro analítico mínimo, limitado não só conceitualmente, mas também pela exiguidade de espaço concedido pelos jornais, e tudo segundo a fluidez exigida pela ligeireza do grande jornalismo da atualidade”, escreve.
Em partes, essa perspectiva se assemelha à de Afrânio Coutinho. O soteropolitano ficou famoso por seus embates com críticos cujos critérios eram impressionistas e biográficos, como Álvaro Lins, ou sociológicos e historicistas, como Antonio Candido. Talvez uma estratégia de conquista de espaço, como aponta Flora Süssekind.
Se para uns a crítica em si era essencial, para Coutinho o essencial à crítica era mesmo o conteúdo estético. Assim, uma crítica que não se voltasse para esse aspecto não estaria completa. É dever do crítico recorrer a diversas teorias para conquistar uma visão mais ampla e abrangente do objeto de estudo. O estético, escreve, “inclui, incorpora o histórico, o social, o político, o religioso, o econômico, porém esses elementos não existem na obra tais como na realidade. O real histórico é diverso do real literário. A verdade histórica é diferente da verdade estética ou poética. Está acima dela, com ela não se confunde”.
A crítica literária brasileira começa a atingir seu estado de maturação, segundo Coutinho, a partir da década de 50, quando deixa de ser considerada um gênero literário para tomar caráter de atividade reflexiva, próxima à filosofia e à ciência. E talvez este seja o seu grande legado.
Me parece que o desejo de Coutinho era que, em vez de buscarmos um distanciamento da obra para avaliarmos seu contexto histórico-sociológico, mergulhássemos em suas rimas, buscássemos o tutano da palavra e, quando lá chegássemos, seria inevitável não depararmos com a história, a economia e a política que dela transcendem. Mas seria possível chegar completamente a um sem a consciência do outro?
4. Lacunas
Obras literárias excluídas do cânone apreendem a diversidade estética de uma época: a experiência de não ser autorizado a escrever, a falar, prepara um espaço de liberdade cuja independência ilumina os fenômenos de anacronismo, desatualização e policromia de um mesmo momento da cultura.
A crítica do final do século 19 a meados do século 20 simplificava a literatura realizada por mulheres, apontando para um resultado com “características tipicamente femininas” — inferiores, portanto. Dificilmente um escritor é alvo de crítica por ter produzido uma obra “masculina demais” ou, ainda, “branca demais”.
Desde o século 19 as mulheres fazem literatura e participam do circuito literário do país: saraus, associações e jornais literários. É justamente por meio de uma assimetria social entre os gêneros e as identidades étnico-raciais que se materializam um tipo feminino e um tipo negro, sustentados numa visão estereotipada da feminilidade e da negritude. Parafraseando Virginia Woolf, é como se as mulheres fossem uma invenção dos homens na literatura, de certo modo como os negros dos brancos. Assim, a crítica acabou se caracterizando por se amparar mais numa construção social e política relacionada à autoria do que nos atributos inerentes ao próprio texto.
Com a literatura negro-brasileira o interesse, quando vinha, surgia apartado da categoria de objetos e agentes literários, ocupando tão somente o lugar “social”. Caso que ocorreu, entre tantos outros, com Carolina Maria de Jesus e o clássico Quarto de despejo.
Ao promover uma ruptura irredutível — o negro como sujeito da escrita —, a literatura negro-brasileira se viu sob um fogo cruzado, segundo Maria Lúcia de Barros Mott: “Os que se dizem negros ou afro-brasileiros são frequentemente acusados de só tratarem de assuntos negros. Os que omitem a questão da cor muitas vezes não são considerados negros”.
Cabe aos críticos desenvolver uma nova epistemologia para análise de textos que questionem os conhecimentos do homem branco europeu
Não à toa nenhum compêndio da história da literatura brasileira (como os de José Veríssimo, Lúcia Miguel Pereira, Afrânio Coutinho, Maussaud Moisés, Antonio Candido, Ronald de Carvalho e Alfredo Bosi) que fosse escrito hoje poderia se eximir de incluir uma gama extensa de autorias nacionais, cujo apagamento das historiografias até agora só se sustenta em razão do caráter eurocêntrico do cânone literário brasileiro.
O momento de afirmação da literatura negro-brasileira surge no final da década de 70, com a efervescência dos movimentos sociais contra a ditadura, dentre eles a criação do Movimento Negro Unificado. Como forma de enfrentamento ao cânone e ao mercado editorial, autores negros passam a atuar em coletivos e publicar seus títulos em antologias e séries.
O século 19 e o início do 20 trouxeram grandes autores negros, como Luiz Gama, Cruz e Sousa, Machado de Assis, Lima Barreto e Lino Guedes. No entanto, eles atuavam ainda de forma isolada. A geração de 70 marca no texto literário a valorização de seu pertencimento racial e a denúncia da discriminação para contestar a democracia racial brasileira.
Surge na mesma época a chamada geração mimeógrafo, formada por autores como Chacal, Francisco Alvim e Ana Cristina Cear, que são forçados a atuar à margem do mercado editorial e passam a produzir, editar, distribuir e vender seus textos diretamente para o público-leitor. Os “marginais”, no entanto, chamam atenção da crítica acadêmica e começam a ser publicados pelas grandes editoras, tendo como marco dessa virada a antologia 26 poetas hoje, organizada por Heloisa Buarque de Hollanda em 1976. Autoras e autores negros passaram a ganhar relevância no meio literário só com a virada do milênio.
A cor da pele, sabemos, não tem nenhuma importância para a genética, mas importa para a semiótica social — e, por que não, literária? Para Uruguay Cortazzo, professor da Universidade Federal de Pelotas, “o corpo negro é um corpo marcado. Na literatura negra, por isso, raça e cor devem ser interpretadas como portadores de valores míticos, sociais, culturais, políticos e estéticos que se inscrevem e reescrevem na pele e que constituem um imaginário social e artístico sólido e palpável para qualquer um”.
Conceição Evaristo — além de célebre escritora, doutora em literatura comparada pela Universidade Federal Fluminense — afirma que o fazer literário das mulheres negras busca não só um sentido estético: “Surge a fala de um corpo que não é apenas descrito, mas antes de tudo vivido. A escrevivência das mulheres negras explicita as aventuras e as desventuras de quem conhece uma dupla condição, que a sociedade teima em querer inferiorizada, mulher e negra. Na escrita busca-se afirmar as duas faces da moeda num único movimento”.
Já que seus agentes propõem uma ruptura e releitura da literatura brasileira, cabe aos críticos desenvolver uma nova epistemologia (ou o que Ricardo Riso chama de afroepistemologia) para análise de textos literários que questionem os conhecimentos universais do homem branco europeu.
Tal como no poema de Conceição Evaristo, é preciso “mascar,/ rasgar entre os dentes,/ a pele, os ossos, o tutano/ do verbo”. É fato que há mais autorias de mulheres, de negros e negras, de indígenas, mas há crítica disposta a realmente nos ler?
Matéria publicada na edição impressa #68 em março de 2023.
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